quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Organização e burocracia: faces da mesma moeda?

Preâmbulo

A idéia inicial do texto era conciliar a reflexão sociológica em torno da questão da organização com uma proposição conclusiva no que diz respeito à organização revolucionária. Seria um “passo a passo” do que defendemos enquanto organização.
Essa idéia não pôde ter sido consolidada, pois o artigo assumiu essa forma atual meses atrás sem a última parte, que seria justamente a temática da organização revolucionária em sua forma propositiva, no sentido pragmático do termo. Dessa forma, a parte pragmática/propositiva fica pra um outro momento, mas é bom deixar claro que a ausência disso não implica uma falta de atenção para esse lado, pelo contrário.


Organização Burocrática


Uma burocracia consiste num conjunto de relações sociais pautadas na dominação (indivíduo pelo todo), pressupõe, portanto, uma hierarquia. A característica primordial de uma organização burocrática é a perda de controle por parte da base (já que numa organização desse caráter opõem-se duas categorias: base x cúpula) de sua própria organização, ou, melhor dizendo, a impossibilidade do começo ao fim de algum controle da organização pela base. A oposição base x cúpula equivale-se à oposição: dirigentes x executantes.

Qualquer que seja o grau de democracia formal existente no interior da organização, os militantes terão consciência que cabe aos especialistas avaliar a situação objetiva e dela deduzir a linha que se impõe; a atividade dos militantes então, consistirá – ao longo de todo ano – em executar o que os políticos tiverem decidido. [...] o trabalho de direção separa-se do trabalho de execução. Uma vez instaurada, essa diversidade tende a aumentar e a se aprofundar por si mesma: os dirigentes especializam-se em seu papel e tornam-se indispensáveis, enquanto os executantes mergulham em suas tarefas concretas. Privados de informação, da visão geral da situação e dos problemas da organização, paralisados em seu desenvolvimento pela falta de participação no conjunto da vida do partido, esses últimos têm cada vez menos a possibilidade e a capacidade de controlar os primeiros. (CASTORIADIS, 1985, p.164)

Em Lênin essa divisão do trabalho é enfatizada e tida como necessária. Em O que fazer? Lênin preconiza a estruturação de uma organização de revolucionários profissionais, hiper-centralizada (em algumas dezenas de cabeça), que irá dirigir todo o movimento.

[...] o social-democrata deve[r], antes de tudo, pensar em organizar revolucionários capazes de dirigir toda a luta emancipadora do proletariado. (LÊNIN, 1978)

Além disso, Lênin demonstra como sua forma de organização é estruturada da cúpula para a base em Um passo à frente, dois passos atrás.

Tentativa talvez quase única de análise da noção de burocratismo é a que opõe no novo Iskra (n.0 53) o "princípio democrático formal" (o sublinhado é do autor) ao "princípio burocrático formal". Burocratismo versus democracia é de fato centralismo versus autonomismo; é o princípio de organização da social-democracia revolucionária em oposição ao princípio de organização dos oportunistas da social-democracia. Este último tenta avançar da base para o topo, e é por isso que defende, sempre que possível e tanto quanto possível, o autonomismo, a "democracia" que vai (nos casos em que há excesso de zelo) até ao anarquismo. O primeiro tende a começar pelo topo, preconizando o alargamento dos direitos e poderes do centro relativamente às partes. (GUÉRIN apud LÊNIN, 1982, p. 100)

Dessa forma a única democracia que podemos conceber numa organização desse tipo é a elegibilidade dos dirigentes. A democracia é reduzida a isso. Com um pouco mais de atenção é fácil ver a proximidade que esse modelo tem da democracia burguesa.

A base não dirige a organização sob o pretexto de que ela elege, uma vez por ano, delegados que designarão um comitê central; do mesmo modo, o povo não é soberano na república parlamentar sob pretexto de que elege periodicamente deputados que designarão o governo. (CASTORIADIS, 1985, p. 165)

Essa mentalidade, como bem assinala Castoriadis, se relaciona com um fundamento teórico, uma concepção positivista de ciência, a pretensão de deter a verdade única. Os teóricos do partido (vanguarda esclarecida) são os únicos que detém o caminho exato para a emancipação humana, devido ao fato de que o socialismo é uma verdade científica a ser desvendada por uma teoria.

E, se o socialismo é uma verdade científica à qual tem acesso o os especialistas através de sua elaboração teórica, disso se segue que a função do partido revolucionário seria a de importar o socialismo no proletariado. Esse, com efeito, não poderia chegar ao socialismo a partir de sua própria experiência; no máximo, poderia reconhecer no partido que encarna essa verdade o representante dos interesses gerais da humanidade – e apóia-lo. [...] O partido deteria a verdade sobre o socialismo, já que detém a única teoria capaz de levar até ele. Portanto, ele é; de direito, a direção do proletariado; e deve tornar-se tal também de fato, já que a decisão pode pertencer apenas aos especialistas da ciência da revolução. A democracia, então, na medida em que é admitida, não passa de um projeto pedagógico ou adaptação justificada pelo caráter “imperfeito” da ciência revolucionária. Mas é o partido que sabe e pode determinar qual a dose útil de democracia. (CASTORIADIS, 1985, p. 163-164)

O revolucionário profissional é revolucionário por profissão, ele é especialista em revolução, a função dele na divisão social do trabalho é fazer a revolução. Da mesma forma que a função de um engenheiro é dar as coordenadas para a construção de um edifício a função de um revolucionário profissional é dar as coordenadas para a realização da revolução. Ele é legítimo como tal pelo fato de que detém a verdade científica e por isso é uma vanguarda esclarecida.
O próprio Lênin está constantemente preocupado em demonstrar a exatidão de suas teses, chega ao maniqueísmo simplista de afirmar (em O que fazer?) que aquele período (1902) se define da seguinte forma: ou ideologia burguesa ou socialista. A afirmação não seria tão tosca se ele não entendesse socialismo como sinônimo de bolchevismo e, assim sendo, ou é bolchevismo ou é burguês. Essa falsa dicotomia serviu como pretexto para o assassinato de diversos militantes na Rússia.
O papel do teórico do partido completa-se na medida em que a consciência socialista por parte do proletariado deve necessariamente vir de fora, ou seja, dos intelectuais burgueses (ou ex-operários) que tiveram acesso aos estudos científicos aprofundados. O proletariado, segundo Lênin, chegaria espontaneamente apenas na consciência trade-unionista.
Dessa forma, a política revolucionária imbrica-se num tecnicismo próprio de uma razão instrumentalizada e, a partir da teoria dá-se um passo para a racionalização da organização e a conseqüente burocratização. Isso por que a própria teoria afirma a separação do aparelho diretivo do executante.
O elemento que está acima dos indivíduos organizados, nesse caso, é a burocracia, a própria organização engessa-se na conservação de sua burocracia, ou seja, na manutenção do poder. Em suma, a fissura entre base e cúpula é a premissa para a burocratização da organização, assim como para o firmamento do processo de reificação dos indivíduos, i.é, a transformação dos indivíduos em “coisa” e que não tem controle sobre a instituição que ele mesmo fundou.
Com esse conceito (reificação) Marx tentava demonstrar como o capital subordina os indivíduos em seu papel de sujeito histórico e o substitui.¹ Da mesma forma o faz a burocracia, substituindo os indivíduos em seu papel norteador da ação. É também por isso que a crítica do fetichismo faz-se necessária, o “socialismo” de Estado reproduz a fetichização das relações sociais (delegar ao mundo das coisas um movimento próprio) na medida em que reproduz a dicotomia entre dirigentes e executantes (conversão do trabalho útil ao trabalho abstrato) no seio da estrutura produtiva, e é com mais coerência que esses regimes são denominados de capitalismo de Estado.
Não podemos dizer que nos Estados onde reinam o capitalismo de Estado a manutenção da ordem, através destes aparelhos burocráticos, é sinônima de manutenção do processo revolucionário, esse grande mito é proferido pelos socialistas de Estado a todo vapor. Mas essa é uma outra questão que apenas se relaciona com a proposta central do texto.
O que tentaremos expôr como proposta central do texto é a viabilidade de uma organização que não caia nas garras da burocracia, lançando as bases sociológicas para tal projeção e em seguida repensar no que esses pressupostos implicam, do ponto de vista pragmático, para uma organização que pretende abolir essas mesmas formas de relações sociais que [re]produzem a burocracia.


Organização Revolucionária


Antes de projetar um tipo de organização que não se acorrente nas amarras da burocracia é preciso um ponto de partida, um pressuposto sob o qual essa projeção está baseada. Tendo a perspectiva de que os fins a que determinada luta revolucionária leva está plantado em seu próprio embrião (no embrião dessa luta).

Marx define na “Ideologia Alemã” o comunismo não como um “estado do ser”, mas sim como um processo.

“O comunismo não é para nós um estado que deve ser estabelecido, um ideal para o qual a realidade terá que se dirigir. Denominamos comunismo o movimento real que supera o estado de coisas atual”. (MARX, 1986)

Isso significa dizer que o comunismo não é uma etapa a ser alcançada (como o proclama o aforismo leninista) o comunismo está aqui e agora, pois ele é um processo, um constante “devir”. Ele é constante e diz respeito à subjetividade humana, a predisposição extática (dinâmica, que está em constante movimento) da humanidade. (Holloway, 2003). Porém, esse fazer histórico não é totalmente livre. Na sociedade capitalista o sujeito é transformado em objeto, o que significa dizer que a humanidade não é mais um fim (a razão do desenvolvimento social-histórico), mas sim um meio, e o capital torna-se um fim ao negar a subjetividade humana. O que não significa que estamos em um sistema fechado, do qual a subordinação da humanidade ao capital torna-se inelutável. A negação (o capital) depende do negado (a humanidade) para poder existir, e esse é o ponto de partida para a possibilidade da sociedade comunista. A sociedade comunista tem esse nome pelo fato de que a partir desse momento o constante devir (ou seja, o comunismo) é processado sem a negação da subjetividade humana, isso não significa dizer que na sociedade comunista a humanidade é extática, que é o fim da história e etc., mas sim o fim de uma etapa na história da humanidade, a etapa onde ela era negada como sujeito histórico.

Esse é certamente o pressuposto sob o qual a projeção de uma organização deve ser feita. É a tentativa de fazer com que nossa subjetividade não seja negada pela burocracia. É importante ressaltar que quando falamos do antagonismo binário entre capital e trabalho não estamos a negar a multiplicidade de antagonismos existentes em nossas relações sociais. Sobre isso, John Holloway:

“[...] a própria compreensão das relações sociais como caracterizadas por um antagonismo binário entre o fazer e o feito [produzir e produto do trabalho] significa que esse antagonismo existe na forma de uma multiplicidade de antagonismos, que existe uma grande heterogeneidade do conflito. [...] defender uma hegemonia da luta da classe trabalhadora compreendida empiricamente ou afirmar que essas resistências que aparentemente não são de classe devem ser subsumidas à luta de classes, seria uma violência absurda. O argumento aqui é exatamente o contrário: o fato de que a sociedade capitalista se caracteriza por um antagonismo binário entre o fazer e o feito significa que esse antagonismo existe como uma multiplicidade de antagonismo.” (Holloway, 2003, p. 68-69).

O antagonismo entre o fazer e o feito se dá na medida em que o feito se torna alheio aos fazedores, o feito torna-se exterior aos fazedores e os nega (trabalho alienado). Assim os capitalistas apropriam-se individualmente de um feito que foi coletivo, dessa forma (ainda sob os parâmetros de Holloway) o “poder-fazer” (ou poder constituinte, a capacidade humana de produzir e etc.) gera e ao mesmo tempo é negado pelo “poder-sobre” (poder constituído, dominação e etc.).
Da mesma forma, numa organização burocrática, os chefes possuem o “poder-sobre” e se apropriam individualmente do feito do resto. É comum na história a ênfase nas personalidades, assim como o fez Stálin em atribuir a “inspiração” e “chefia” da revolução russa de outubro à Lênin.

“Isto não significa, naturalmente, que a insurreição de Outubro não teve o seu inspirador. Não, teve o seu inspirador e chefe. Mas este foi Lênin, e ninguém mais [...]” (Stálin, 1954).

Portanto, a organização revolucionária não deve ser projetada sob o paradigma do “contra-poder” (próprio das organizações de esquerda cujo objetivo é a tomada do poder político), mas sim sob o do “anti-poder”. Ao encarnar esse paradigma em sua própria forma, a organização desde já planta as bases para o “comunismo”, desde já estabelece a coerência entre meios e fins, ou seja, não pretende abolir a alienação (negação) através de meios alienados.


¹. "De fato isso aconteceu, não é só uma ilusão, nós não podemos romper com as amarras ideológicas que a ordem social burguesa e o capitalismo nos impõe simplesmente por um ato de consciência. Por que isso é uma coisa prática, vivida, na nossa vivência cotidiana, afinal de contas, a partir daquele movimento simples que começa da conversão do trabalho útil ao trabalho abstrato nós estamos delegando ao mundo das coisas um movimento próprio. Por que? A partir daqui o que vai acontecer? Essa lógica da mercadoria vai se universalizar e quando esse se generaliza acontece a inversão, a interversão dialética, aquilo que começa com a produção de valores de uso que eventualmente tornam-se valores de troca transforma-se na produção de valores de troca que acidentalmente tornam-se valores de uso." (Maria Eduarda. Disciplina Sociologia da Cultura. Teoria Crítica (aula 2).

Por Grupo De Estudos Socialismo Libertário, Recife, 2009.

Bibliografia:

Castoriadis, Cornelius. A Experiência do Movimento Operário. In Garcia, Marco Aurélio (ORG.). São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

Guérin, Daniel. Rosa Luxemburgo e a Espontaneidade Revolucionária. São Paulo: Editora Perspectiva, 1982.

Holloway, John. Mudar o mundo sem tomar o poder. São Paulo: Editora Viramundo, 2003.

Lênin, V. I. O que fazer? São Paulo: Editora Hucitec, 1978.

Marx, K. A ideologia Alemã. São Paulo: Hucitec, 1986. (Parte I)

Stálin, J. V. Obras – 6º vol., Editorial Vitória, 1954. [HTML: http://www.marxists.org/portugues/stalin/1924/troskismo/index.htm]