quinta-feira, 16 de outubro de 2008

O GRANDE OUTUBRO NA UCRANIA



Nestor Makhno

O mês de Outubro de 1917 é uma grande etapa histórica da Revolução russa. Esta etapa consiste na tomada de consciência dos trabalhadores - das cidades e do campo - dos seus direitos de controlar as suas próprias vidas e o seu património social e económico: o cultivo da terra, as habitações, as fábricas, as minas de carvão, os transportes e, enfim, a instrução, que servia outrora para destituir os nossos antepassados de todos esses bens.Entretanto, do nosso ponto de vista, dar a Outubro todo o conteúdo da Revolução russa seria afastar-se muito da realidade. A Revolução russa foi preparada durante os meses que precederam Outubro, período no qual os camponeses e os operários se apoderaram do mais importante. A Revolução de Fevereiro pode servir de símbolo para os trabalhadores da sua libertação ulterior do jugo económico e político aos quais estavam submetidos. Constataram, sem hesitar, que a Revolução de Fevereiro tomou, na sua evolução, a forma degenerada de um produto da burguesia liberal, e, como tal, foi incapaz de se colocar na via da acção social. Os trabalhadores ultrapassaram imediatamente os limites instaurados pela Revolução de Fevereiro, e puseram-se a romper às claras todos os elos com o seu aspecto pseudo-revolucionário e os seus objectivos.Esta acção revestiu dois aspectos na Ucrânia: no momento em que o proletariado das cidades, devido à fraca influência exercida sobre ele pelos anarquistas, por um lado, e a falta de informação, por outro, sobre as posições reais e os problemas internos dos partidos, considerava que colocar os bolcheviques no poder era o dever mais importante na luta iniciada para o desenvolvimento da revolução, a fim de substituir a coligação dos socialistas- revolucionários de direita e da burguesia.Durante esse tempo, no campo, em particular na parte zaporogue da Ucrânia, lá onde a autocracia nunca pôde abolir inteiramente o espírito livre, o campesinato trabalhador revolucionário considerava como o seu dever mais imperativo e importante o facto de empregar a acção revolucionária directa para se libertar o mais rápido possível dos pomestchikis e dos kulaks(1), estimando que esta emancipação facilitaria a vitória contra a coligação político-social-burguesa. É por isso que os camponeses começaram, na Ucrânia, a sua ofensiva, ao confiscar as armas dos burgueses (a marcha do general Kornilov sobre Petrogrado em muito contribuiu para isto, em Agosto de 1917), recusando pagar, em seguida, a segunda parcela anual de impostos sobre a terra aos proprietários e kulaks.Essa terra, que os agentes da coligação se esforçavam, com zelo, para retirar das mãos dos camponeses, para a conservar nas mãos dos proprietários, com o pretexto de que o governo devia observar o status quo até à decisão da Assembleia Constituinte. Os camponeses puseram-se, então, a expropriar directamente os pomestchikis, kulaks, dos mosteiros e das terras do Estado, assim como do gado, instituindo, sempre directamente, comités locais de gestão desses bens, para a sua repartição entre os diferentes vilarejos e comunas.Um anarquismo instintivo transparecia em todas as intenções dos camponeses da Ucrânia naquele momento, exprimindo um ódio não-dissimulado por toda a autoridade estatal, acompanhada de uma aspiração a dela se libertar.Esta aspiração era muito forte entre os camponeses. Consistia, em substância, em libertar-se das instituições da polícia, do juiz enviado do centro pela burguesia, e assim por diante. Essa aspiração exprimia-se, na prática, em muitas regiões da Ucrânia. Há inúmeros exemplos testemunhando de que maneira os camponeses das províncias de Ekaterinoslav, de uma parte de Tavripol e de Kherson, de Poltava e Kharkov expulsaram a polícia dos vilarejos, ou, então, retiraram-lhe o direito de prender, sem antes se dirigir aos comités de camponeses e às assembleias dos vilarejos; os polícias estavam reduzidos a representar o papel de mensageiros das decisões tomadas... O mesmo ocorria com os juizes.Os próprios camponeses julgavam todos os delitos, durante as assembleias ou reuniões, privando de todo o direito de jurisdição os juizes enviados pela autoridade central. Os juizes caíam, às vezes, em tal desgraça junto aos camponeses que, amiúde, eram obrigados a fugir e a esconder-se. Tal comportamento dos camponeses para com os seus direitos individuais e sociais obrigou-os naturalmente a temer que a palavra de ordem "Todo o poder aos sovietes" se transformasse num poder de Estado: estes temores não se manifestavam, talvez, tão claramente no proletariado das cidades, que estava mais sobre influência dos social-democratas e dos bolcheviques.Para os camponeses, o poder dos sovietes locais significava transformar esses órgãos em unidades territoriais autónomas, sobre a base do agrupamento revolucionário e autogestionário socio-económico dos trabalhadores, na via da construção de uma nova sociedade. Assim compreendendo esta palavra de ordem, os camponeses fizeram-na sua, aplicaram-na, desenvolveram-na e defenderam-na contra os ataques dos socialistas-revolucionários de direita, dos cadetes e da contra-revolução monarquista.Outubro ainda não havia ocorrido quando os camponeses, em inúmeras regiões, recusaram-se a pagar os impostos de arrendamento aos pomestchikis e aos kulaks, confiscaram-lhes as terras e o gado, em nome das suas colectividades, enviaram, em seguida, delegados ao proletariado das cidades para se entender com ele quanto ao controle das fábricas, empresas, etc., e estabelecer elos fraternos a fim de construírem , juntos, a nova e livre sociedade dos trabalhadores.Naquele momento, a aplicação prática das ideias do "grande Outubro" não tinha sido adoptada pelos seus inimigos, e era muito criticada nos grupos, organizações, partidos, e seus comités centrais. Desse modo, o grande Outubro, na sua designação cronológica oficial, aparece aos camponeses revolucionários da Ucrânia como uma etapa já alcançada. Durante as jornadas de Outubro, o proletariado de Petrogrado, Moscovo e outras grandes cidades, assim como os soldados e camponeses se avizinhavam destas cidades, sob a influência dos anarquistas, dos bolcheviques e dos socialistas revolucionários de esquerda, regularizaram e expressaram politicamente com maior precisão o motivo que levou os camponeses revolucionários de inúmeras regiões da Ucrânia a lutar activamente, já a partir do mês de Agosto, em condições muito favoráveis do ponto de vista do proletariado urbano.As repercussões da vontade proletária de Outubro chegaram à Ucrânia com um mês e meio de atraso. Ela manifestou-se, inicialmente, por apelos de delegados e partidos, em seguida, por decretos do Soviete dos Comissários do Povo, em relação ao qual os camponeses ucranianos se conduziram com desconfiança, não tendo participado na sua designação. Grupos de guardas vermelhos apareceram em seguida, vindos em parte da Rússia, atacando, em todos os lugares, os nós de comunicação e as cidades, para expulsar as tropas contra-revolucionárias dos cossacos da Rada(2) central ucraniana, tão contaminada pelo chauvinismo que não pôde ver nem compreender com quem e a que se aparentava a população trabalhadora ucraniana, nem o seu espírito revolucionário manifestado no combate pela sua independência social e política.Ao fazer esta análise do grande Outubro, no seu 10º aniversário, devemos ressaltar que o que fazíamos na Ucrânia, nos campos, integrou-se perfeitamente, ao fim de dois meses, às acções dos trabalhadores revolucionários de Petrogrado, de Moscovo e das outras grandes cidades. Tanto estimamos a fé revolucionária e o orgulho manifestado pelos camponeses ucranianos antes de Outubro, como celebramos, também, e nos inclinamos diante das ideias, da vontade e da energia manifestadas pelos operários, camponeses e soldados russos durante as jornadas de Outubro. É verdade que, ao tratar do passado, não é possível passar ao lado do presente, ligado de um modo ou de outro a Outubro. Não podemos deixar de exprimir uma profunda dor moral pelo facto de, após dez anos, as ideias que encontraram a sua expressão em Outubro serem achincalhadas por aqueles, que em seu nome, chegaram ao poder e dirigem a partir daí a Rússia.Nós exprimimos a nossa solidariedade entristecida por todos aqueles que lutaram connosco pelo triunfo de Outubro, e que apodrecem actualmente nas prisões e nos campos de concentração, cujos sofrimentos, sob a tortura e a fome, chegam até nós, e obrigam-nos a sentir, em vez de alegria pelo 10ª aniversário do grande Outubro, uma profunda aflição. Por dever revolucionário, elevamos mais uma vez a nossa voz para além das fronteiras da URSS: devolvam a liberdade aos filhos de Outubro, devolvam-lhes os seus direitos de se organizar e propagar as suas ideias. Sem liberdade e sem direitos para os trabalhadores e para os militantes revolucionários, a URSS asfixia-se e mata tudo aquilo que tem de melhor nela. Os seus inimigos alegram-se com isso, e preparam-se em todos os lugares do mundo, com a ajuda de todos os meios possíveis, para esmagar a Revolução e a URSS com ela.(1) Pomestchikis: grandes proprietários de terras; kulaks: ricos fazendeiros (2) Rada: Assembleia Constituinte dos deputados na Ucrânia em 1918

.http://www.fondation-besnard.org/article.php3?id_article=131

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Sobre o último encontro

Galera, no último debate(15/09), o qual aconteceu quarta-feira na sala 42 do CAC, acabamos o livro de Engels "do socialismo utópico ao socialismo científico". O debate foi, apesar de poucos terem comparecido, na minha leitura, bastante profícuo além de prazeroso. Discutimos o livro ponto a ponto, alguns pontos abordados por exemplo foram:
1) o pensamento dialético x o pensamento metafísico;
2) O que distingue o socilaismo dito utópico e o dito científico;
3) O que vem a ser meio de produção, forças produtivas e modo de produção;
4) em que consiste a contradição entre forças de produção e modo de produção;
5) O pensamento economicista de Engels x O pensamento dialético de Marx
6) Contribuições dos "utópicos" (Fourier, Saint-Simon e Owen), segundo Engels.
7) Materialismo histórico e mais-valia
dentre tantos outros...

O livro é em suma, mais uma defesa do "socialismo científico" (materialismo histórico ,especificamente) do que um livro que apresente as idéias dos socialistas "utópicos". O espaço reservado aos 3 mais conhecido desses é infímo.

O próximo debate será realizado nessa segunda-feira (22/09) na sala 42 do CAC, às 18:30, a qual acredito estar vazia a esse horário e se não tiver parece que sempre rola umas salas vazias no CAC. A mudança de sala justifica-se pelo fato de que nesse horário tem aula na sala 29. O texto será "As idéias Absolutistas no pensamento Socialista" de "Rudolf Rocker", anarco-sindicalista clássico. Berna passou os trechos que ele selecionou do livro pra leitura nesse email, mas pra quem quiser ler a obra toda tem no http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/rocker.html

A pasta "grupo de estudos sobre o socialismo libertário" já foi criada e encontra-se perto da casa verde, entre ela e o hare, depois de um cara gordinho que tira xérox. É só perguntar pela pasta. Quem quiser ta colocando textos correlatos que não são necessariamente pra debater na pasta fiquem à vontade para tal.

Se faltou alguma coisa, complementem!
ae!

Por Gustavo

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Nossa luta é global e por isso necessitamos maior intercâmbio



Agência de Notícias Anarquistas > Fale algo sobre a historia da WSM (Movimento de Solidariedade dos Trabalhadores)...

Paddy Rua <> Vocês mantém núcleos em toda Irlanda?

Paddy <> Qual o perfil dos militantes da WSM? Gente jovem? Trabalhadores e estudantes? Há equilíbrio entre o número de homens e mulheres na organização?

Paddy <> E quais as principais lutas da WSM hoje?

Paddy <> E estas lutas estão fazendo a WSM crescer?

Paddy <> Vocês editam algum jornal?

Paddy <> E possuem espaços, sedes?

Paddy <> E no geral como anda o movimento anarquista na Irlanda. Há outras iniciativas libertárias a se destacar?

Paddy <> Vocês participaram da última Feira do Livro Anarquista em Londres. Conte-nos um pouco como foi essa edição. Essa é a maior Feira editorial da Europa, certo? Outra coisa, li uma nota dizendo que um grupo “anarco-capitalista” foi expulso da Feira, o que passou?

Paddy <> E há alguma Feira na Irlanda? Algum evento “grande”?

Paddy <> No Reino Unido há alguma tentativa de coordenar federativamente os diversos grupos?

Paddy <> Diferentemente de outros lugares, de longe sinto que o tema “ecologia”, a luta ambientalista está muito presente no universo anarquista no Reino Unido. Concorda ou estou equivocado?

Paddy <> Gostaria de acrescentar algo mais? Obrigado e ânimo na luta!

Paddy < Bom, nada além de estabelecer nosso ânimo de trocar opiniões e experiências com os libertários em luta na América do Sul. Cremos que há coisas muito importantes e desenvolvimento que nos enchem de otimismo no hemisfério sul, especialmente, no que se refere ao movimento anarco-comunista. Nossa luta é global e por isso necessitamos maior intercâmbio. Agradecemos muita a entrevista.

Secretaria Internacional da WSM: wsm_ireland@yahoo.com

WSM: www.wsm.ie

Cultura no Brás no Início do Século XX: Teatro Anarquista e Cinema Burguês

No processo imigratório para São Paulo, milhares de italianos vieram e um grande número se estabeleceu no bairro do Brás. Chegaram aqui persuadidos pela necessidade de mão de obra na nascente indústria paulistana e nas fazendas de café. Não trouxeram somente sua força de trabalho: junto a ela vieram sua cultura e ideologia. A imigração atingiu seu apogeu ainda na República Velha, período marcado pela indiferença social, repressão e uma economia monocultora voltada para o mercado exterior, além do autoritarismo da elite agrária, que utilizava seu poder institucionalizado para fazer o que bem entendia com o país, aproveitando a máquina estatal para seu benefício próprio.

Com o intuito de conservar-se no poder, essa elite agrária dificultou ao máximo o desenvolvimento da indústria, e deste modo reprimiu a formação de novas classes sociais que viessem a conflituar com ela pelo poder.

No entanto, mesmo com o empecilho à atividade industrial esta desenvolveu-se no país, principalmente nos seus dois principais núcleos urbanos, São Paulo e Rio de Janeiro. No primeiro, a atividade concentrou-se no bairro do Brás, onde instalaram-se as poucas indústrias que contavam com o investimento de cafeicultores e as pequenas indústrias dos imigrantes italianos. Eles viram alguns poucos de seus integrantes conseguir fixar-se como industriais e crescerem economicamente, tendo em Matarazzo seu principal emblema. Esse processo de enriquecimento fez com que alguns trabalhadores voltassem a sua percepção e destinassem a sua força de trabalho para a acumulação de capital tentando seguir o exemplo dos compatriotas enriquecidos. A maioria destes imigrantes organizou-se em sindicatos e sociedades de classe para reivindicar melhorias nas condições de trabalho e de sobrevivência.

Parte da enorme quantidade de capital proporcionada aos fazendeiros pela produção de café foi investida em estradas de ferro e indústrias, tendo sido São Paulo o principal palco escolhido para isso. Ao chegarem fugidos da lavoura, os imigrantes viam que sua única possibilidade de sobrevivência estava nos bairros operários, tanto como trabalhadores da indústria quanto como comerciantes, artesãos ou vendedores. Isto, proporcionou um enorme crescimento do bairro do Brás, onde grande parte dos imigrantes, principalmente italianos, veio a acomodar-se.

Neste novo mundo do trabalho, o operário via-se dentro de uma sociedade que se tornava cada vez mais complexa, porém ainda extremamente arcaica, onde o proletariado imigrante vivia numa estrutura fabril parecida com a do início da Revolução Industrial em seus países de origem.

Diversas ideologias apareceram e duas principais conflituavam entre si no meio dos próprios italianos: a primeira delas, de exploração do trabalho submisso nas fábricas para a acumulação de capital e posterior subida na escala social, era encabeçada pela figura do italiano enriquecido Francesco Matarazzo; a outra, de luta contra o sistema capitalista burguês de repressão, via governo e Igreja, era encabeçada pelos anarquistas.

A situação de conflito ideológico levou cada lado a utilizar-se de um meio de comunicação em busca de adesão. Os capitalistas utilizaram-se do cinema europeu e americano de ostentação e os anarquistas do teatro libertário, dos bailes e das escolas alternativas como meio de formação intelectual do operariado para a contestação do sistema.

A fixação pela figura do Conde Matarazzo fez com que estes trabalhadores fechassem os olhos para a exploração a qual estavam submetidos e constatassem que nunca conseguiriam ser como seu ídolo. É neste momento que surge a força e a importância da organização trabalhista anarquista, empenhando-se em denunciar a verdadeira situação do proletariado. Para isso, utilizou-se de meios que agregassem os membros da classe e atraíssem a atenção de todos, desde a panfletagem até a formação de sindicatos, escolas alternativas, organizações de classe, centros de cultura, círculos de palestras, bailes, greves e principalmente a atividade cultural teatral.

O governo mostrava-se omisso quanto à educação da população, possibilitando a instalação de escolas libertárias nos bairros populares pelos anarquistas. Eram as chamadas Escolas Modernas e ensinavam tanto as matérias normais quanto a importância destes filhos de operários dentro do sistema, sensibilizando-os para a causa anarquista e libertária, indo contra qualquer meio de repressão, principalmente as escolas “emburrecedoras” oficiais e as da Igreja.

As escolas libertárias e os centros de cultura eram mantidos financeiramente com doações e as receitas de bailes e de peças teatrais, evidenciando a importância da realização destas atividades tanto na formação da população quanto para a continuidade do processo educacional.

Após grande repressão governamental em 1917, as concentrações voltaram-se principalmente para a atividade teatral. Seus primeiros registros datam de 1902. Estas peças representavam obras européias, no início somente em italiano e algumas em espanhol. A partir de 1914 iniciou-se um processo de tradução das peças, pois o proletariado não era mais somente constituído de italianos e espanhóis. Isso teve um forte impulso a partir do desencadeamento da Primeira Guerra, quando a produção cultural na Europa sofreu uma estagnação e assim começaram a surgir os primeiros textos anarquistas brasileiros.

Em todas as peças representadas o ponto de vista era o do operário, mostrando principalmente o cotidiano desta população: greve, delação, relação empregador-empregado e a condenação de um estado de apatia da classe com relação as desigualdades sociais. As encenações eram precárias, devido à falta de recursos, fazendo com que as mesmas peças, com os mesmos cenários e figurinos fossem representadas repetidamente; no entanto, isso ajudou a melhorar a qualidade do espetáculo e a formar uma consciência de classe. Convém salientar que a mensagem das representações era mais importante do que sua estética.

No início do século, devido à falta de escolas de teatro e de incentivos, não era grande o número de atores profissionais no Brasil, fazendo com que os poucos existentes fossem absorvidos pelo teatro oficial do centro, que também incluía uma programação nacional em rodízio com companhias estrangeiras. Deste modo, aos teatros de subúrbio não havia disponibilidade de atores profissionais, o que dificultava a encenação de mais obras libertárias.

Para suprir esta dificuldade, os centros de cultura, sindicatos e associações uniram suas forças para a formação de atores dentro dos próprios trabalhadores associados, constituindo assim os primeiros grupos amadores de teatro que sempre passavam a representar obras anarquistas européias.

Com o tempo, parte dos grupos manteve o amadorismo, uniformidade e especializou algumas famílias, sendo as mais famosas e atuantes as dos Valverde Dias e dos Cuberos. Foram surgindo também grupos profissionais, que não necessariamente encenavam peças libertárias, mas tinham no repertório peças que tratavam do tema de associações trabalhistas e exploração do proletariado. Todavia, o que mais encenavam eram peças anti-clericais.

O trabalhador do Brás reservava o período entre as 20 horas de sábado e as 16 horas de domingo como seu único período de lazer, e queria retirar o máximo de proveito desta situação. As peças anarquistas passaram a apresentar mais e mais atividades aliadas a elas, como conferências, peças infantis e bailes.

Os encontros anarquistas aconteciam principalmente nos salões dos centros de cultura e sindicatos e nos grandes teatros da região, o Teatro Colombo, o teatro da Sociedade de Beneficência Guglielmo Oberdan e nos salões da Associação Auxiliadora das Classes Laboriosas.

O Teatro Colombo foi o principal do Brás, localizado no Largo da Concórdia. Antes de ser transformado em teatro nele funcionava o Mercado do Brás, construído em 1897, e pouco tempo depois convertido em centro das atividades culturais do bairro. Sua capacidade era para 1.968 pessoas, em diferentes andares e acomodações. Sempre quando aberto estava lotado. No decorrer do século, o Colombo foi transformando-se de teatro em cine-teatro, e em seu final em apenas cinema, quando foi devorado por um grande incêndio.

A Sociedade de Beneficência Guglielmo Oberdan localizada à Rua do Gasômetro, próxima do Teatro Colombo, foi um dos principais pontos de encontro no bairro por muito tempo, pois em seus salões realizavam-se os mais famosos bailes, com peças de teatro. A exemplo do Teatro Colombo, mais tarde foi transformada em cinema. O local ficou marcado na história do Brás por uma tragédia que lá ocorreu, quando houve um principio de incêndio com pânico generalizado que resultou na morte de 31 pessoas. Destas, 30 eram crianças. A tragédia revelou uma face da situação dos cinemas na época, que competiam pela maior lotação e não aplicavam recursos suficientes para a prevenção de acidentes.

Em 1891 pedreiros e carpinteiros uniram-se na forma de cooperativa para a formação de convênio médico para os familiares dos profissionais destes ramos. Alugaram um prédio e contrataram médicos e dentistas, fazendo surgir a Associação Auxiliadora das Classes Laboriosas na Rua do Carmo, local importantíssimo para a representação artística na cidade de São Paulo.

Nos salões da AACL realizavam-se os maiores bailes e as principais peças anarquistas do Brás, sendo este sempre um grande local para convenções políticas, o que acabou sendo desarticulado somente a partir da ditadura varguista do Estado Novo.

A exploração dos trabalhadores e falta de assistência por parte do governo da República Velha fez abrir cada vez mais um vão entre a produção artística e cultural de cada lado do Rio Tamanduateí, que se transformou literalmente num divisor de culturas.

A imprensa burguesa, com seus jornais e corporações informativas, não noticiava as atividades teatrais anarquistas, criando um boicote a esta produção, obstaculizando a divulgação de organizações do proletariado em seus meios de comunicação.

Combatendo a falta de recursos governamentais, os centros de cultura continuaram a educar e ensinar os trabalhadores, não somente com peças anarquistas ou material político mas também com obras de ficção, que correspondiam a um terço de toda a importação e produção editorial destes centros. Pretendia-se, com a distribuição de livros entre os trabalhadores, conscientizá-los em relação à exploração em que viviam.

Mesmo com todo este processo de conscientização da população, houve crescimento das salas de cinema e a transformação de teatros em salas de exibição da nova arte, o cinema. Isso ocorreu devido à repressão iniciada nos anos 20 (principalmente no governo de Arthur Bernardes) com a instalação de processos para deportação e exílio de anarquistas. Com o enfraquecimento do movimento anarquista, os antigos teatros deixavam de ser palco para peças libertárias, passando a exibir filmes burgueses tanto europeus quanto americanos. Tal processo reduziu mais ainda a força dos anarquistas, que não conseguiram fazer frente a ele. Acabaram por perder com o tempo os grandes palcos do Teatro Colombo e do Oberdan para o cinema, que veio no início a ocupar os espaços vazios entre as temporadas de grupos teatrais e que passou a ocupar todo o tempo destes espaços.

Portanto, notamos que o movimento artístico anarquista conseguiu manter sua unidade até a repressão oficial atingi-lo frontalmente a partir dos anos 20 e a invasão do cinema. Este novo modo de arte e de representação do mundo, extremamente caro para ser produzido e barato para ser assistido, refletia para a população um ideal de mundo burguês diferente dos ideais pregados nas peças de teatro. Os anarquistas foram traídos pela falta de recursos próprios para a continuidade da educação dos trabalhadores, num momento de repressão oficial e de discriminação pelos comunistas, perdendo seus espectadores para algo se pretendia mais bonito, interessante e relaxante: o cinema. Os teatros e bailes organizados pelos centros de cultura deixaram de ser o único lazer dos trabalhadores, passando a competir e muitas vezes conviver com algo mais novo e tentador.

A mobilização social por parte dos anarquistas importunou a elite política, que mesmo com a repressão às escolas libertárias e às festas não conseguia acabar de vez com o movimento.

A situação mudou drasticamente desde Arthur Bernardes até a chamada Revolução de 30, quando Getúlio Vargas assumiu o governo. Desde a posse, seu governo adotou medidas extremamente populistas. A primeira delas foi um pacote de políticas trabalhistas que era exatamente tudo o que os operários reivindicaram por trinta anos, adicionado de alguns outros pontos.

Os pontos adicionais foram o tiro de queda para o movimento comunista, que estava começando após a perseguição aos anarquistas nos anos 20. O principal deles dizia que os sindicatos estariam vinculados ao Estado e dessa forma permitia um grande controle estatal sobre estas instituições, retirando grande parte de seu poder.

Getúlio conseguiu o apoio da maioria da população, pois com suas medidas deu melhores condições de vida e de trabalho para as classes mais baixas que perderam as lideranças anarquistas para o exílio e as prisões. Podemos perceber que o pacote de medidas getulistas era exatamente o que os patrões desejavam para acalmar e animar os trabalhadores que já eram brasileiros, e não mais imigrantes. Estes deixavam de reivindicar melhorias, paravam de fazer greves e ainda trabalhavam contentes, produzindo mais para o patrão. Era exatamente o que a elite precisava para ter os operários nas suas mãos, e Getúlio conseguiu isso.

Os anarquistas que restavam logo perceberam o real interesse deste pacote, mas não conseguiam mais o apoio dos trabalhadores, o que dificultava seu trabalho. Mesmo assim continuaram suas peças de teatro, gradativamente perdendo mais público para os filmes americanos, que representavam a sociedade de consumo e um hipotético sonho dos trabalhadores. Sem o devido apoio, o movimento foi perdendo sua força, até ser novamente golpeado em 1937, quando instaurou-se o Estado Novo.

Com um discurso que se dizia salvador da família, tradição e propriedades dos brasileiros, Getúlio instaurou alguns órgãos repressores que foram fundamentais para a destruição do movimento anarquista no Brás e no Brasil.

Com o Departamento de Imprensa e Propaganda – DIP - , Getúlio controlava de perto a produção cultural do país, impedindo assim a realização de peças teatrais e conferências anarquistas e de teor socialista e anti-capitalista no Brasil.

Impedindo a realização das peças anarquistas, restava ainda para os centros de cultura e ativistas em geral a memória do que havia sido produzido e suas bibliotecas. Foi ai que o governo do Estado Novo atacou para tentar acabar com qualquer vestígio de memória sobre a educação e organização do proletariado no início do século.

Dando amplos poderes à polícia política e à polícia secreta, o governo fez uma limpeza de tudo o que lembrasse ou simplesmente mencionasse a organização operária anarquista no começo do século. Assim, invasões aos centros de cultura e a residências de anarquistas tornaram-se comuns, já que o governo tinha o intuito de prender os antigos organizadores da oposição e queimar as bibliotecas anarquistas. É por isso que até hoje há pouquíssimo material escrito sobre a produção artística nos bairros operários no período de 1900 a 1930.

Devido à “limpeza” produzida pelo Estado Novo, e a partir da educação oficial, omitiu-se da história a organização sindical e anarquista e sua imensa produção cultural no início do nosso século. É por isso que até hoje persiste o pensamento de que neste período não se produzia cultura fora dos centros burgueses; este é o motivo de só termos registros das atividades culturais elitistas, como as do Teatro Municipal de São Paulo e da Semana de Arte Moderna de 1922, por exemplo.

Atualmente, o operariado não apresenta mais a organização que uma vez já teve, que já foi uma grande resistência no passado, gerando acontecimentos como a grande Greve Geral de 1917. Isto foi obra dos governos repressores, o democrático de Arthur Bernardes e o ditatorial e populista de Getúlio Vargas, principalmente no Estado Novo, período que se prolongou de 1937 a 1945.

Um dos fatores utilizados pelo governo varguista para adestrar o operariado foi o cinema norte-americano e suas representações dos sonhos de consumo. A partir dos anos 40, o Brás tornou-se o segundo centro de salas de exibição desta arte, perdendo apenas para a Cinelândia, no centro da cidade.

Ir ao cinema era a principal atividade social da população, que via nisso algo extremamente “chique”. Isso se reflete nos grandes sucessos de público, com a construção no Brás de enormes cinemas, destacando-se o Oberdan, Piratininga, Babylonia, Universo e Roxy, com o cine-teatro Colombo acompanhando o movimento.

Estas salas representavam, em 1945 um terço dos gigantes de São Paulo, cada um com enorme capacidade de público. No Piratininga cabiam 1.034, no Universo eram 998 e no Roxy 751 pessoas. Juntamente a isso, criava-se um novo modo de vida necessário para freqüentar estas salas, onde até os bilheteiros não podiam sentar-se para trabalhar e só eram aceitas pessoas vestindo trajes sóbrios.

Gradativamente observa-se a forte presença da sociedade americana, com sua ideologia inserindo-se no interior da base trabalhadora brasileira, substituindo os ideais socialistas por ideais da sociedade de consumo.

Porém, esta situação logo se modificou, tornando-se insustentável tanto devido às crises no cinema Hollywoodiano quanto à mobilidade da população, que se transferiu do Brás para outros bairros, deixando o espaço vazio para as ondas migratórias nordestinas que chegaram com a promessa de desenvolvimento industrial do governo Juscelino Kubistschek. Esta população que não havia recebido a educação e a cultura dos italianos e não tinha dinheiro para freqüentar os cinemas deixou os gigantes do Brás vazios, levando-os posteriormente à falência.

Portanto, podemos afirmar que Getúlio Vargas concretizou o que se vinha tentando desde o início da República e a conseqüente industrialização brasileira. Seu governo teve a habilidade de transformar o operariado em massa de fácil manobra, ignorante e desinformada tanto sobre o presente quanto sobre seu passado organizado e ativo.

Este processo ocorreu a partir de 1930 quando, após a Revolução, Vargas assumiu a presidência e empenhou-se em aniquilar a organização operária. Para isso, foram utilizados vários meios, sendo eles a degradação de monumentos à cultura antiga, encerramento das atividades de sindicatos e centros de cultura, destruição de arquivos históricos sobre o tema e degradação do bairro do Brás de um modo geral, para impedir a reestruturação da antiga organização.

Dentro destes pontos notamos como se inserem o incêndio do Teatro Colombo durante a Ditadura Militar, abandono de vários pequenos teatros, cinemas e centros de cultura, transformação de cinemas em estacionamentos e igrejas evangélicas, queima de bibliotecas públicas e particulares sobre a organização anarquista e a transformação do bairro do Brás em local de mera passagem, onde ninguém se fixa, apenas passa, exatamente o que ocorreu com os italianos, nordestinos e atualmente com os coreanos.

A produção cultural apresenta dois principais objetivos: o entretenimento e a formação político-intelectual da platéia. Até a Revolução de 30, a cultura produzida no Brás estava destinada a formar indivíduos contestadores dentro da camada baixa da população, ou seja, as organizações anarquistas entretinham e formavam uma ideologia própria para a população.

Esta organização operária não agradou a elite, que estava vendo sua produtividade cair e a instabilidade social. O método encontrado para interromper isso, foi a introdução via ditadura de uma política populista altamente repressora e controladora, que passava um estado de felicidade e tranqüilidade para o operariado, excluindo a problemática social da população.

Deste modo, houve a destruição da memória da organização operária após a chegada da política varguista. Nunca mais esta voltou a ser o que foi, tornando-se atualmente praticamente sindicalista, sem a intenção de ensinar e trazer a cultura para a camada mais baixa da população, esperando que o governo o faça, e não tomando atitudes próprias para a criação de escolas como os anarquistas fizeram no início do século com as Escolas Modernas.

Notamos e concluímos deste trabalho que a organização operária anarquista do início do século sofreu incrível repressão pois a elite não estava interessada em ver a base da população levantando-se contra o sistema, inspirando-se nos ideais anarquistas ou da Revolução Russa que havia ocorrido a pouco.

Os governos esforçaram-se ao máximo para substituir os meios de lazer do operariado. Deste modo, saíram de circulação os centros de cultura libertária. Primeiramente entrou em seu lugar o cinema norte-americano e o rádio, e logo estes deram lugar a algo mais moderno, barato e de fácil acesso a todos: os programas de auditório da televisão.

Indicações Bibliográficas

ALVIM, Zuleika : Brava gente: os italianos em São Paulo, 1870 - 1920 . Brasiliense, São Paulo, 1986

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BORGES, Paulo E. B.: Jaime Cubero e o movimento anarquista em São Paulo: 1945 - 1954 . Mestrado em Ciências Sociais, PUC-SP, 1996.

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DIÉGUES, Manuel Júnior: Imigração, industrialização, urbanização . Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais

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OLIVEIRA, Maria Coleta F. A. de & PIRES, Maria Conceição S. : A imigração italiana para o Brasil e as cidades . Núcleo de Estudos da População, Unicamp, Campinas, 1992

PEDRO, Antônio: EUA: Crise do capitalismo in História Moderna e Contemporânea . 1ª Edição, Moderna, São Paulo, 1985

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Siamo Tutti Oriundi . Yolat Indústria e Comércio de Laticínios Ltda (Parmalat do Brasil), São Paulo, 1997

Extraído do site:


O PENSAMENTO SOCIALISTA LIBERTÁRIO DE NOAM CHOMSKY (Parte 2)

8. A Democracia


O conceito de democracia defendido por Chomsky está longe de ser aquele que vivemos na presente data. A palavra democracia, que tem origem grega – demos significando povo e kratia significando governo ou poder – tão utilizada durante a História, pode ter hoje os mais diferentes – e inclusive antagônicos – significados. Falam de democracia hoje, desde os anarquistas, até George Bush. Chomsky freqüentemente utiliza a palavra democracia e talvez por isso seduza elementos da esquerda mais institucional, que acreditam que os seus partidos sejam um elemento essencial nessa tal democracia. Mas enfim, o que Chomsky quer dizer quando utiliza a palavra democracia?

Como ele bem diz: “A crítica da ‘democracia’ entre os anarquistas sempre foi uma crítica da democracia parlamentar, da maneira como ela surgiu dentro das sociedades com aspectos fortemente regressivos”(31). Sua crítica vai no mesmo sentido da crítica anarquista. Quando utiliza a palavra democracia de maneira positiva, não se refere a ela, como expressão dos partidos políticos e do sufrágio universal. A democracia representativa seria, assim como mostraram amplamente os anarquistas, uma forma de entregar a um terceiro – o político profissional – o direito que cada um de nós tem, de fazer política e de participar nas decisões diretamente. Como diz Malatesta: “Governo significa delegação de poder, ou seja, abdicação da iniciativa e da soberania de todos nas mãos de alguns.”(32) O governo seria, portanto, um elemento centralizador que tiraria do povo a capacidade de tomar as decisões políticas. Assim, o parlamento criaria uma distinção entre os governantes e os governados aumentando progressivamente a distancia entre uns e outros. Pelos próprios exemplos da História, podemos observar que mesmo os governos mais “progressistas” têm uma enorme distância da base e, conforme sustenta sua burocracia – os governantes – têm cada vez mais a necessidade de permanecer no poder e acabam corrompidos por esse próprio poder, sem falar no dinheiro. Como escreveu Kropotkin:

“Os parlamentos, fieis à tradição real e a sua transfiguração moderna, o jacobinismo, não fizeram senão concentrar os poderes nas mãos do governo. Funcionalismo para tudo – tal é a característica do governo representativo. Desde o princípio deste século, se fala em descentralização, autonomia, e não se faz senão centralizar, matar os últimos vestígios de autonomia.”(33)

Segundo Chomsky, a democracia representativa seria criticada basicamente por dois motivos: primeiramente por razão da centralização das decisões no Estado, que exerceria o monopólio do poder; depois, pela democracia representativa tratar somente da esfera política e não se estender às outras esferas. Apesar de Chomsky acreditar que os partidos políticos são, algumas vezes, a expressão da vontade do povo, ele diz que a criação de partidos políticos não é a melhor maneira de atingir os desejos do povo e nem mesmo garante que isso seja um meio adequado.(34)

O sentido que Chomsky dá à palavra democracia é o seguinte: participação efetiva nas tomadas de decisão. Isso não significa uma participação meramente consultiva, mas realmente deliberativa nas decisões relativas a cada um. Poderíamos, inclusive, realizar uma comparação entre a “democracia” em Chomsky, e a “autogestão” estendida ao âmbito político, o que alguns anarquistas consideram ser o federalismo. A mesma autogestão que explicamos acima, quando estendida ao âmbito político, constitui o conceito de democracia que julgamos estar presente em Chomsky. Podemos relacionar essa democracia, mais com o conceito de democracia direta do que com a democracia representativa, ou parlamentar. Na democracia direta, as decisões não são inteiramente delegadas a uma outra pessoa – o que acontece na democracia representativa – mas são tomadas por cada grupo, no âmbito do trabalho ou no âmbito das comunidades. Uma efetiva democracia em que o poder emana realmente do povo e não de uma classe de representantes qualquer, que toma as decisões em nome do povo. A possibilidade de uma instância decisória maior e a possibilidade de relação entre as comunidades e os diferentes ramos de trabalho, constituiriam o federalismo que Proudhon defendera na década de 1860.

O federalismo abriria as portas para uma instância decisória descentralizada que balancearia, como acreditava Proudhon, a autoridade e a liberdade. Possibilitaria, dessa forma, a tomada de decisões fora do Estado. Escrevia ele que

“Federação (...) quer dizer pacto, contrato, tratado, convenção, aliança,etc., é uma convenção pela qual um ou mais chefes de família, uma ou mais comunas, um ou mais grupos de comunas ou Estados, obrigam-se recíproca e igualmente uns em relação aos outros para um ou mais objetos particulares, cuja carga incumbe especial e exclusivamente aos delegados da federação.”(35)

“A idéia de federação é certamente a mais alta à qual se levou até aos nossos dias o gênio político. (...) Ela resolve todas as dificuldades que suscita o acordo Liberdade e Autoridade. Com ela não temos mais de recear afundarmo-nos nas antinomias governamentais (...).”(36)

Dessa forma, as diversas comunidades tomariam as suas decisões em nível local, passando as decisões a um delegado – que seria escolhido por membros da própria comunidade e teria mandato revogável – que se encarregaria de levar as decisões de sua comunidade para uma instância maior de decisão. A grande diferença em relação ao sistema político representativo é que esse porta-voz (o delegado) seria somente um elo de transmissão entre a comunidade e uma instância decisória maior, e não decidiria pela comunidade que representa.

Chomsky diz que “os representantes devem responder diretamente para a comunidade orgânica em que vivem”, que “os partidos políticos representam basicamente interesses de classe” e que “à medida que os partidos políticos forem sendo necessários, a organização anarquista da sociedade terá falhado”. Nesse sentido, ele em muito se assemelha àqueles que defendem a extensão da autogestão também ao âmbito político. É por isso que, do nosso ponto de vista, podemos desmistificar o tal conceito de democracia presente em Chomsky, mostrando que apesar da utilização de uma palavra que já não diz mais nada, o significado que é dado a ela é, em muito, bastante radical.

9. As Metas e os Projetos

Todo o pensamento de Chomsky em relação ao anarquismo está sendo trabalhado a partir da perspectiva que ele mesmo definiu enquanto sendo as metas e os projetos. Segundo suas próprias definições

“Por projetos, eu quero dizer a concepção de uma sociedade futura que inspire o que realmente fazemos, uma sociedade na qual um ser humano respeitável gostaria de viver. Por metas, eu quero dizer as escolhas e tarefas que estão a nosso alcance, e iremos seguir um caminho ou outro, guiados por um projeto que pode estar distante e não ser muito bem acabado.”(37)

Dessa maneira, ele cria um método para podermos traçar objetivos factíveis e que podem nos trazer ganhos imediatos. Para Chomsky, por mais que os ideais de revolução ou de uma sociedade libertária estejam tão presentes em nós, não adianta somente termos isso em vista e não nos mobilizarmos hoje para começar a traçar o caminho rumo a esse objetivo. Para ele, as metas seriam os objetivos de curto prazo; algo bem definido que podemos realizar hoje. Assim, podemos entender como metas, por exemplo, uma exigência no ambiente de trabalho por melhores salários, ou a organização da comunidade para que uma rua seja asfaltada; enfim, tudo aquilo que dentro de um curto prazo, temos a possibilidade de conseguir. Essas metas envolvem escolhas difíceis e com sérias conseqüências humanas. Elas devem ser traçadas com o objetivo de resolver um problema imediato. Existem pessoas que têm necessidades imediatas e não podem esperar muito tempo por uma solução; por isso, uma meta pode ser alimentar os famintos ou lutar para que o governo melhore o nível da assistência de saúde aos cidadãos. Muitos podem acusar essas metas de serem “assistenciais” ou “reformistas” mas o fato é que, para Chomsky, são necessidades imediatas e que precisam ser resolvidas. A luta por esses ganhos, porém, pode ser uma faca de dois gumes. Podemos, muitas vezes, acabar perdidos em meio à institucionalização e termos como nosso fim essas metas de curto prazo. É aí que entra o projeto. O nosso projeto – ou, aquilo que vemos como fim – é a realização de uma sociedade libertária onde cada um possa ter direito ao desenvolvimento completo de suas faculdades e potencialidades; uma sociedade que não dê espaço a qualquer tipo de opressão. O que Chomsky vai dizer é que as nossas metas devem sempre ter em vista um projeto, que pode não ser bem definido, mas deve servir como um horizonte a ser atingido. Assim, ao traçarmos nossos objetivos de curto prazo, devemos sempre ter em vista onde queremos chegar pois, somente assim, poderemos evitar de nos perdermos ou sermos enganados pelos menores ganhos que queremos obter.

Isso levanta uma importante reflexão sobre as reformas e a revolução – o que tratamos com um pouco mais de profundidade num outro artigo. Segundo Chomsky, esse método de enxergar a dinâmica social pode ser aplicado na discussão das reformas – sendo estas entendidas como os ganhos de curto prazo – e da revolução – sendo esta entendida como fim último e grande objetivo dos libertários. Para ele, o erro nessa análise seria colocar as reformas como sinônimo de reformismo. O reformismo seria as reformas sendo entendidas como o fim. O objetivo final de um reformista é a reforma. No entanto, as reformas podem ser entendidas como um fim – constituindo, nesse caso, o reformismo – ou podem ser entendidas como uma meta, um ganho de curto prazo que abre caminho para algo maior. A defesa que Chomsky faz dessa luta pelos ganhos de curto prazo tem suas raízes principalmente no pensamento de Rudolf Rocker e de Rosa Luxemburgo. Rocker, cujos argumentos eram a base do anarco-sindicalismo, dizia que os ganhos de curto prazo serviriam para a melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores, mas ao mesmo tempo serviriam para criação de consciência e para a preparação de um mundo ideal – a tal política pré-figurativa já citada anteriormente. Para ele, os sindicatos revolucionários têm dois objetivos:

“1º Como organização militante dos trabalhadores contra os patrões, dar força às reivindicações dos trabalhadores para garantir a elevação de seu meio de vida. 2º Como escola para a preparação intelectual dos trabalhadores, capacitá-los para a direção técnica da produção e da vida econômica em geral, de forma que, ao produzir-se uma situação revolucionária, eles estejam aptos para tomar por si mesmos o organismo social-econômico e refazê-lo em concordância com os princípios socialistas.”(38)

Rosa Luxemburgo tem também grande influência nessa concepção de Chomsky. Quando em resposta ao criador do reformismo dentro da social-democracia alemã, Edward Bernstein, ela justificava que

“as reformas e a revolução não são métodos diferentes de desenvolvimento histórico, que se pode escolher à vontade no refeitório da história, (...) e sim fatores diferentes no desenvolvimento da sociedade de classe, condicionados um ao outro e que se completam, ainda que se excluindo reciprocamente.” (39)

As reformas e as revoluções não seriam portanto antagônicas, mas sim complementares e, dentro da análise de Chomsky, deveriam ser entendidas e projetadas em conjunto. Um ganho de curto prazo, por isso, pode ser um meio para que algo mais seja feito. Essas metas, como já dito, não devem nunca perder de vista o projeto libertário, ou seja, a revolução e a constituição de uma sociedade libertária. Esse projeto deve iluminar as nossas ações de hoje e servir sempre como um guia, inspirando e dizendo em que sentido devem acontecer as nossas ações.

Malatesta que, como dissemos anteriormente, não é citado por Chomsky, desenvolveu algo semelhante a esse pensamento quando em suas reflexões sobre as reformas. Enquanto a tão sonhada revolução não chegar, dizia ele, não devemos acabar condenados à inação, esperando que a revolução chegue por si só. Para ele, as atividades de propaganda e a luta pelos ganhos de curto prazo também seriam um passo rumo ao projeto libertário. Segundo ele, a conquista de reformas poderia ser entendida como um ganho, arrancado do governo, e serviria como um primeiro passo rumo à revolução. Dizia Malatesta que

“(...) é preciso arrancar do governo e dos capitalistas todas as melhorias de ordem política e econômica que podem tornar menos difíceis para nós as condições da luta e aumentar o número daqueles que lutam conscientemente. É preciso, portanto, arrancá-las por meios que não impliquem o reconhecimento da ordem atual e que preparem caminho ao futuro.”(40)

10. A Teoria da Jaula

Como último tema, decidimos tratar da Teoria da Jaula e da polêmica que se realizou em torno dela. Conforme vimos acima, a forma de pensar de Chomsky é muito semelhante a muitos anarquistas. Então por que Chomsky não é bem recebido por boa parte dos anarquistas? Eis o que pretendemos esclarecer ao expor e discutir essa sua teoria.

Baseado em sua concepção de metas e projetos, Chomsky começou a pensar a relação dos movimentos com o Estado. Nessa relação – também em grande parte contemplada na discussão de reformas e revolução colocada acima – ele começou a pensar em como lidar com as presentes tiranias e, por meio dos movimentos sociais, investir numa tentativa de aumentar o escopo da liberdade. É aí que Chomsky vai chegar a uma conclusão que ele sustenta com bastante eloqüência: as corporações multinacionais são tiranias muito piores que os governos. Segundo o seu ponto de vista, os governos, por menos democráticos que sejam, dão a possibilidade – mesmo que mínima – de intervenção ou participação do público, e as corporações são ditaduras informais que não dão praticamente nenhum espaço para influência ou participação. Essa vulnerabilidade do governo deveria servir para que as pessoas conseguissem ganhos, lutando contra os problemas que as afligem de maneira imediata. Essa possibilidade de influência não necessariamente deveria passar pela via institucional; ela poderia se dar também, e principalmente, por pressão popular, movimentos de ação direta, enfim, as pessoas poderiam pressionar o governo de todas as maneiras possíveis. O que é claro para Chomsky é que o Estado seria, de certa maneira, “pressionável”. Ao contrário, as corporações – ou tiranias privadas como Chomsky gosta de chamá-las – têm como único objetivo, a obtenção de lucro e não têm qualquer dever, mesmo que retórico, de proteção das pessoas. Ele acredita que é muito mais difícil um movimento influenciar uma empresa do que influenciar o governo.

É a partir desse ponto de partida que a Teoria da Jaula será concebida. Segundo Chomsky, ela foi-lhe explicada pelo “movimento de trabalhadores do Brasil”. Perguntamo-nos que movimento seria esse; os Sem Terra talvez? Quem sabe, pode ser que seja. O fato é que toda essa teoria está baseada na seguinte concepção: a sociedade contemporânea estaria trancafiada dentro de uma jaula. O objetivo daqueles compromissados com a luta pela liberdade, pela igualdade e contra a opressão deveria ser, portanto, aumentar o chão dessa jaula até que as barras se quebrem e que o povo pudesse se ver livre da opressão – da jaula, cerceadora de suas liberdades. Muitas vezes, nos seus textos e entrevistas ele sustenta que o Estado seria essa jaula. A partir dessa premissa, caberia aos movimentos “progressistas” garantir cada vez mais direitos, dentro do Estado, e esse seria um caminho, ou o primeiro passo para sua abolição. Como a grande tirania de nosso tempo seria as corporações, o Estado, nesse sentido, poderia garantir alguns direitos e algum tipo de bem-estar às pessoas. Realmente parece confuso. Para Chomsky, no mundo de hoje

“(...) as metas de um anarquista comprometido devem ser defender algumas instituições do Estado do ataque que é feito contra elas e ao mesmo tempo tentar fazer com que, ao final, elas sejam desmanteladas, constituindo uma sociedade mais livre.”(41)

Essa idéia de “defender” o Estado em alguns sentidos é a grande polêmica com os anarquistas. Estes, desde há muito tempo, sustentam que o Estado, juntamente com o Capital são as duas grandes tiranias que escravizam o povo. Como é que, de uma hora para outra, algum libertário pode falar em defender qualquer aspecto que seja do Estado? Para alguns é um absurdo que Chomsky dê declarações desse tipo:

“Minhas metas de curto prazo são defender e até mesmo reforçar elementos da autoridade do Estado que embora sejam ilegítimos de maneira fundamental, são decisivamente necessários neste momento para impedir os esforços dedicados a atacar os progressos que foram conseguidos na extensão da democracia e dos direitos humanos.”(42)

Para ele, as conquistas sociais, que foram conseguidas depois de anos e anos de movimentação social, estão sendo perdidas em nome dos lucros. A jornada de oito horas de trabalho, as boas condições de saúde e segurança no trabalho, o registro em carteira, as férias e diversos outros direitos duramente conquistados, são exemplos de perdas que temos sofrido a cada dia com a ordem neoliberal que vem emergindo. Por isso, fazer com que o Estado faça cumprir essas leis, para Chomsky, é um caminho de dar ajudas de curto prazo às pessoas que realmente precisam. Isso está intimamente ligado à sua forma de pensar as metas e os projetos, as reformas e a revolução. Estes ganhos obtidos junto ao Estado – as reformas – conforme vimos acima, devem ser entendidos como um primeiro passo rumo à liberdade. A partir dessas conquistas, as pessoas devem querer sempre mais, uma forma de estender ao máximo essas conquistas. Além disso, sua análise acabará colocada da seguinte maneira: se as empresas puderam ser “reformadas” pelos movimentos anarquistas durante grande parte da História, por que é que os governos atuais não poderiam? Para Chomsky, trata-se da mesma questão.

Embora a tal teoria seja complicada dentro do plano das idéias, quando é colocada em termos práticos, pode ser aceita sem maiores polêmicas. Chomsky tem uma visão muitíssimo pragmática e nada idealista. Para ele, aqueles que têm necessidades urgentes hoje, devem conseguir resolver seus problemas hoje. Por isso, ao falarmos dos famélicos, daqueles que não têm assistência médica decente, Chomsky é o primeiro a defender que essas pessoas sejam auxiliadas imediatamente, mesmo que pelo Estado, pois ao contrário, podem acabar mortas. Se tivermos duas alternativas: 1. Auxiliar as pessoas por meio do Estado ou 2. Simplesmente não auxiliá-las; ele é claro ao fazer a sua opção pela primeira alternativa. E é nesse sentido que continuará toda a sua análise. Se tivermos duas opções: 1. Pressionamos o Estado para que ele faça a aplicação das leis que exigem proteção e segurança no trabalho ou 2. Simplesmente ficarmos observando as pessoas morrerem sem nada fazer, ou. mesmo que bem intencionados, não conseguirmos, de forma efetiva, evitar essas mortes; então a alternativa a ser escolhida seria novamente a primeira. Para ele, mesmo que os revolucionários tenham projetos para a solução desses problemas, a partir do momento que eles ainda não conseguirem ser efetivos, deve-se optar pela alternativa que tem mais efetividade naquele momento. Ao ser questionado se essa sua meta não está em contradição com o seu projeto, Chomsky afirma que sim e que ambas sempre estarão em conflito. Segundo ele, caberá a cada um analisar os fatos e optar pelas metas que tiverem mais impactos sobre o bem-estar das pessoas e tentar, ao máximo, fazer com que essas metas estejam alinhadas com o projeto.

***

Essas dez relações entre o pensamento de Noam Chomsky e as idéias do anarquismo podem nos dar uma idéia de suas afinidades com o ideal libertário. Para muitos, isso pode surpreender; para outros, pode contribuir na discussão e na atualização das idéias que buscam minimizar os grandes problemas do mundo de hoje. Não se trata de levar os escritos de Chomsky ao pé da letra como uma fórmula para a solução desses problemas. Ele mesmo diria que se fizermos isso, estaremos mais para fiéis de uma igreja do que para militantes anarquistas. Suas concepções servem para dar algumas idéias e contribuir na discussão do anarquismo hoje.

Com o fim do mundo “socialista” no século XX, as antigas previsões de Bakunin acabaram confirmadas, e a polêmica dentro do socialismo entre os estatistas e os anarquistas ganhou uma nova configuração. A História mostrou a todos que queriam ver, que o tal projeto de ditadura do proletariado era um completo fiasco. Com isso, abre-se uma boa perspectiva para os militantes libertários visto que o socialismo de Estado provou-se incapaz de superar muitos dos problemas que assolam o mundo.

Outro fator que acaba por nos dar credibilidade é o contexto político do Brasil. O antigo sonho de milhares de militantes do Partido dos Trabalhadores de ver o seu partido chegar ao poder acabou realizado. No entanto, o PT mostrou-se incapaz de trazer qualquer mudança no quadro político, econômico e social do país. Além de ter mantido as mesmas políticas econômicas do governo FHC, o governo do PT trouxe um agravante maior: por razão de praticamente todos os movimentos sociais estarem envolvidos em sua fundação – aos finais de década de 1970 e começo da década de 1980 –, agora que o PT é governo, esses movimentos sentem-se contemplados, de certa forma, nesse governo. Ou seja, simplesmente não há forte oposição. Apesar disso, esses movimentos sociais vem percebendo que mesmo no governo do PT não há espaço para a verdadeira democracia ou para a verdadeira liberdade. Apesar de conservadores em muitos sentidos e freqüentemente nada libertários, esse é um espaço que pode ser utilizado de maneira produtiva pelos anarquistas. Encontramos hoje uma série de ex-petistas frustrados com o que se tornou seu partido e uma série de militantes desolados com a institucionalização de seus movimentos ou pelo pouco espaço dedicado às práticas do socialismo e da liberdade. Talvez esse seja um outro espaço interessante a ser ocupado pelas idéias libertárias.

Com o fim do socialismo estatista e com a prova de que mesmo os governos “de esquerda” são tão reacionários como qualquer outro, abrem-se as portas para o desenvolvimento do socialismo libertário. Os grandes problemas colocados ao mundo de hoje, continuam sendo os mesmos: a opressão do capitalismo, a alienação e exploração dos trabalhadores, o grande número de desempregados, a repressão, o controle por parte do Estado, dentre tantos outros. É a “desgraça da exploração econômica e da escravização social e política”. A solução colocada por Chomsky para esses problemas está nas práticas do socialismo libertário. Quando colocamos uma questão a ele, alguns meses atrás (ainda em 2004) e perguntamos se o anarquismo ainda serviria como inspiração e guia para a solução de todas essas questões, sua resposta foi direta: “sem a menor sombra de dúvida.” (43)


Notas

1. Demos preferência para os livros de nosso conhecimento e que foram traduzidos para o português.

2. Chomsky, Noam. Notas sobre o Anarquismo. São Paulo: Imaginário/Sedição, 2004.

3. Ibid. p. 23.

4. Sobre o pensamento individualista de Stirner, ver: Barrué, Jean; Armand, Émile; Freitag, Günther. Max Stirner e o Anarquismo Individualista. São Paulo: Imaginário, 2003. / Diaz, Carlos. Max Stirner, uma Filosofia radical do Eu. São Paulo: Imaginário, 2003. / Stirner, Max. O Único e a sua Propriedade. Lisboa: Antígona, 2004.

5. Para saber mais sobre o anarco-sindicalismo, ver: Vários. História do Movimento Operário Revolucionário. São Paulo: Imaginário, 2004. / Mintz, Frank; Leval, Gaston; Berthier, René. Autogestão e Anarquismo. São Paulo: Imaginário, 2002. / Samis, Alexandre. Clevelândia: anarquismo, sindicalismo e repressão política no Brasil. São Paulo: Imaginário, 2002. / Lopreato, Christina Roquette. O Espírito da Revolta. São Paulo: Annablume, 2000. / Cubero, Jaime. Anarco-sindicalismo no Brasil. São Paulo: Index Librorum Prohibitorum, 2004. / Azevedo, Raquel de. A Resistência Anarquista. São Paulo: Arquivo do Estado, 2002.

6. Sobre o pensamento anarco-comunista, ver: Malatesta, Errico. Escritos Revolucionários. São Paulo: Imaginário, 2000. / Malatesta, Errico. A Anarquia. São Paulo: Imaginário, 2001. / Malatesta, Errico. Anarquistas, Socialistas e Comunistas. São Paulo: Cortez, 1989. / Kropotkin, Piotr. Textos Escolhidos. Porto Alegre: LPM, 1987. / Kropotkin, Piotr. O Estado e seu Papel Histórico. São Paulo: Imaginário, 2000. / Kropotkin, Piotr. A Anarquia: sua filosofia e seu ideal. São Paulo: Imaginário, 2000. / Fabbri, Luigi; Malatesta, Errico. Anarco-Comunismo Italiano. São Paulo: Luta Libertária, 2003. / Reclus, Elisée. A Evolução, a Revolução e o Ideal Anarquista. São Paulo: Imaginário, 2002.

7. Para saber mais sobre o pensamento de Proudhon e Bakunin, ver: Proudhon, P.-J.. O que é a Propriedade? São Paulo: Martins Fontes, 1988. / Proudhon, P.-J.. Filosofia da Miséria. São Paulo: Ícone, 2003. / Proudhon, P.-J.. Do Principio Federativo. São Paulo: Imaginário, 2001. / Proudhon, P.-J.. A Propriedade é um Roubo. Porto Alegre: LPM, 1998. / Bakunin, Mikhail. Estatismo e Anarquia. São Paulo: Imaginário, 2003. / Bakunin, Mikhail. O Princípio do Estado – Três Conferências Feitas aos Operários do Vale de Saint-Imier. Brasília: Novos Tempos, 1989. / Bakunin, Mikhail. Deus e o Estado. São Paulo: Imaginário, 2000. / Bakunin, Mikhail. Escritos Contra Marx, São Paulo: Imaginário, 2001. / Bakunin, Mikhail. Socialismo e Liberdade. São Paulo: Luta Libertária, 2002. / Bakunin, Mikhail. Textos Anarquistas. Porto Alegre: LPM, 2002.

8. Para saber mais sobre a revolução espanhola, ver: Le Libertaire; Le Monde Libertaire. Espanha Libertária. São Paulo: Imaginário, 2002. / Santillán, Diego Abad de. Organismo Econômico da Revolução. São Paulo: Brasiliense, 1980. / Paz, Abel. O Povo em Armas 2v. Lisboa: Assírio e Alvim, 1975. / CNT. A Guerra Civil Espanhola nos Documentos Libertários. São Paulo: Imaginário, 1999. / Enzensberger, Hans Magnus. O Curto Verão da Anarquia. São Paulo: Cia das Letras, 1987. Santillán, Diego Abad de. Alforria Final. São Paulo: Index Librorum Prohibitorum, 2004.

9. Há um interessante livro publicado em Portugal tratando sobre os anarquistas individualistas que preconizavam a “propaganda pelo fato”. Foram responsáveis por uma série de atentados a bomba que fizeram algumas vítimas e de certa forma estigmatizaram os anarquistas. Estiveram presentes em grande medida na França, ao fim do século XIX. Ver: Maitron, Jean. Ravachol e os Anarquistas. Lisboa: Antígona, 1981.

10. Chomsky, Noam. Op. Cit. p. 170.

11. Bakunin, Mikhail. Estatismo e Anarquia. São Paulo: Imaginário, 2003 p. 47.

12. Ibid. 47-79.

13. Chomsky, Noam. Op. Cit. p. 68.

14. Ibid. p. 81.

15. Ibid. p. 87.

16. Para uma interessante discussão entre o anarquismo social e o anarquismo individualista, ver: Bookchin, Murray. Social Anarchism or Lifestyle Anarchism (Anarquismo Social ou Anarquismo como Estilo de Vida). San Francisco: AK Press, 1995.

17. Chomsky, Noam. Op. Cit. p. 54.

18. Rocker, Rudolf. Anarcosindicalismo. Barcelona: Picazo, 1978 p. 26.

19. Ibid. pp. 27-28.

20. Chomsky, Noam. A Luta de Classes. Porto Alegre: ArtMed, 1999 p. 25.

21. Chomsky, Noam. Notas sobre o Anarquismo p. 29.

22. Bakunin, Mikhail. O Princípio do Estado – Três Conferências Feitas aos Operários do Vale de Saint-Imier. Brasília: Novos Tempos, 1989 p. 62.

23. Chomsky, Noam. Notas sobre o Anarquismo pp. 162-164.

24. Bakunin, Mikhail. Socialismo e Liberdade. São Paulo: Luta Libertária, 2002 p. 41.

25. Chomsky, Noam. Notas sobre o Anarquismo p. 196.

26. Ibid. p. 161.

27. Ibid. p. 33.

28. Para um interessante artigo de Chomsky discutindo autogestão, ver: Chomsky, Noam. “Autogestão Industrial”. In: Autogestão Hoje. São Paulo: Faísca: 2004 pp. 43-48.

29. Ver Kropotkin, Piotr. La Conquista del Pan. Madrid: Jucar, 1977 pp. 87-90.

30. Chomsky, Noam. Notas sobre o Anarquismo p. 53.

31. Ibid. p. 80.

32. Malatesta, Errico. A Anarquia. São Paulo: Imaginário, 2001 p. 63.

33. Kropotkin, Piotr. Textos Escolhidos. Porto Alegre: LPM, 1987 p. 51.

34. Chomsky, Noam. Notas sobre o Anarquismo p. 204.

35. Proudhon, P.-J.. Do Principio Federativo. São Paulo: Imaginário, 2001 p. 90.

36. Ibid. p. 125

37. Chomsky, Noam. Notas sobre o Anarquismo p. 93.

38. Rocker, Rudolf. Op. Cit. pp. 93-94.

39. Luxemburgo, Rosa. Reforma ou Revolução? São Paulo: Expressão Popular, 2003 pp. 95-96.

40. Malatesta, Errico. Anarquistas, Socialistas e Comunistas. São Paulo: Cortes, 1989 p. 141.

41. Chomsky, Noam. Notas sobre o Anarquismo p. 100.

42. Ibid. p. 98.

43. Ibid. p. 206.

Extraído do site: http://www.rizoma.net/interna.php?id=213&secao=intervencao

do site: http://www.rizoma.net/interna.php?id=213&secao=intervencao

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Founding of the Worker's International

Mikhail Bakunin

Awakening of Labor on the Eve of the International. In 1863 and 1864, the years of the founding of the International, in nearly all of the countries of Europe, and especially those where modern industry had reached its highest development - in England, France, Belgium, Germany, and Switzerland - two facts made themselves manifest, facts which facilitated and practically made mandatory the creation of the International. The first was the simultaneous awakening in all the countries of the consciousness, courage, and spirit of the workers, following twelve or even fifteen years of a state of depression which came as a result of the terrible debacle of 1848 and 1851. The second fact was that of the marvelous development of the wealth of the bourgeoisie and, as its necessary accompaniment, the poverty of the workers in all the countries. This was the fact which spurred these workers to action, while their awakening consciousness and spirit endowed them with the essential faith.

The Central Sections. But, as it often happens, this renascent faith did not manifest itself at once among the great masses of the European workers. Out of all the countries of Europe there were only two - soon followed by others - in which it made its first appearance. Even in those privileged countries it was not the whole mass but a small number of little, widely scattered workers' associations which felt within themselves the stirrings of a reborn confidence, felt it strongly enough to resume the struggle; and in those associations it was at first a few rare individuals, the more intelligent, the more energetic, the more devoted among them, and in most cases those who already had been tried and developed by previous struggles, and who, full of hope and faith, mustered the courage to take the initiative of starting the new movement.

Those individuals, meeting casually in London in 1864, in connection with the Polish question - a problem of the highest political importance, but one that was completely alien to the question of international solidarity of labor-formed, under the direct influence of the founders of the International, the first nucleus of this great association. Then, having returned to their respective countries - France, Belgium, Germany, and Switzerland - the delegates formed nuclei in those lands. That is how the initial Central Sections (of the International) were set up.

The Central Sections do not represent any special industry, since they comprise the most advanced workers in all kinds of industries. Then what do those sections represent? They represent the idea of the International itself. What is their mission? The development and propagandizing of this idea. And what is this idea It is the emancipation not only of workers in such and such an industry or in such and such a country, but of all workers in all industries - the emancipation of the workers of all the countries in the world. It is the general emancipation of all those who, earning, with difficulty their miserable livelihood by any productive labor what ever, are economically exploited and politically oppressed by capital, or I rather by the owners and the privileged brokers of capital.

Such is the negative, militant, or revolutionary power of this idea. And the positive force? It is the founding of a new social world, resting only upon emancipated labor and spontaneously created upon the ruins of the old world, by the organization and the free federation of workers' associations liberated from the economic and political yoke of the privileged classes.

Those two aspects of the same question, one negative and the other positive, are inseparable from each other.

Central Sections Are Mere Ideological Groupings. The Central Sections are the active and living centers where the new faith is preserved, where it develops, and where it is being clarified. No one joins them in the capacity of a special worker of such and such a trade with the view of forming any particular trade union organizations. Those who join those sections are workers in general, having in view the general emancipation and organization of labor, and of the new social world based on labor. The workers comprising the membership of those sections leave behind them their character of special or "real" workers, presenting themselves to the organization as workers "in general." Workers for what? Workers for the idea, the propaganda and organization of the economic and militant might of the International, workers for the Social Revolution.

The Central Sections represent an altogether different character from that of the trade sections, even being diametrically opposed to them. Whereas the latter, following a natural course of development, begin with the fact in order to arrive at the idea, the Central Sections, following, on the contrary, the course of ideal or abstract development, begin with the idea in order to arrive at the fact. It is evident that in contradistinction to the fully realistic or positivist method of the trade sections, the method of the Central Sections appears to be artificial and abstract. This manner of proceeding from the idea to the fact is precisely the one used by the idealists of all schools, theologians, and metaphysicians, whose final impotence has by now become a matter of historical record. The secret of this impotence lies in the absolute impossibility of arriving at the real and concrete fact by taking the absolute idea as the starting point.

The Central Sections in Themselves Would be Powerless to Draw in Great Masses of Workers. If the International Workingmen's Association were made up only of Central Sections, undoubtedly it would never attain even one hundredth part of the impressive power upon which it is priding itself now. Those sections would be merely so many workers academies where all questions would perpetually be discussed, including of course the question of organization of labor, but without the slightest attempt being made to carry it into practice, nor even having the possibility of doing it...

...If the International were made up only of Central Sections, the latter probably would have succeeded by now in forming conspiracies for the overthrow of the present order of things; but such conspiracies would be confined only to mere intentions, being too impotent to attain their goal since they would never be able to draw in more than a very small number of workers - the most intelligent, most energetic, most convinced and devoted among them. The vast majority, the millions of proletarians, would remain outside of those conspiracies, but in order to overthrow and destroy the political and social order which now crushes us, it would be necessary to have the co-operation of those millions.

The Empirical Approach of Workers to Their Problems. Only individuals, and a small number of them at that, can be carried away by an abstract and "pure" idea. The millions, the masses, not only of the proletariat but also of the enlightened and privileged classes, are carried away only by the power and logic of "facts," apprehending and envisaging most of the time only their immediate interests or moved only by their monetary, more or less blind, passions. Therefore, in order to interest and draw the whole proletariat into the work of the International, it is necessary to approach it not with general and abstract ideas, but with a living tangible comprehension of its own pressing problems, of which evils the workers are aware in a concrete manner.

Their daily tribulations, although presenting to a social thinker a problem of a general character and being actually only the particular effects of general and permanent causes, are in reality infinitely diverse, taking on a multitude of different aspects, produced by a multitude of transitory and contributory causes. Such is the daily reality of those evils. But the mass of workers who are forced to live from hand to mouth and who find hardly a moment of leisure in which to think of the next day, apprehend the evils from which they suffer precisely and exclusively in the context of this particular reality but never or scarcely ever in their general aspect.

Concrete Statement Offers the Only Effective Approach to the Great Mass of Workers. It follows then that in order to touch the heart and gain the confidence, the assent, the adhesion, and the co-operation of the illiterate legions of the proletariat - and the vast majority of proletarians unfortunately still belong in this category - it is necessary to begin to speak to those workers not of the general sufferings of the international proletariat as a whole but of their particular, daily, altogether private misfortunes. It is necessary to speak to them of their own trade and the conditions of their work in the specific locality where they live; of the harsh conditions and long hours of their daily work, of the small pay, the mean ness of their employer, the high cost of living, and how impossible it is for them properly to support and bring up a family.

And in laying before them the means to combat those evils and to better their position, it is not necessary at all to speak to them at first of the general and revolutionary means which now constitute the program of action of the International Workingmen's Association, such as the abolition of individual hereditary property and the collectivization of property the abolition of the juridical right and that of the State, and their replacement by the organization and free federation of producers' associations The workers, in all probability, would hardly understand all that. It also is possible that, finding themselves under the influence of the religious political, and social ideas which governments and priests have tried to implant in their minds, they will turn away in anger and distrust from any imprudent propagandist who tries to convert them by using such arguments.

No, they should be approached only by way of holding up before them such means of struggle the usefulness of which they cannot fail to comprehend hend, and which they are prone to accept upon the promptings of their good sense and daily experience. Those first elementary means are, as we already have said, the establishing of complete solidarity with their fellow-workers in the shop, in their own defense and in the struggle against their common master; and then the extension of this solidarity to all workers in the same trade and in the same locality in their joint struggle against the employers - that is, their formal entrance as active members into the section of their trade, a section affiliated with the International Workingmen's Association.

The economic fact, the conditions in a special industry and the particular conditions of exploitation of that industry by capital, the intimate and particular solidarity of interests, of needs, sufferings, and aspirations which amongst all workers who are members of the same trade section - all that forms the real basis of their association. The idea comes afterward as the explanation or the adequate expression of the development and the mental reflection of this fact in the collective consciousness.