terça-feira, 16 de setembro de 2008

O PENSAMENTO SOCIALISTA LIBERTÁRIO DE NOAM CHOMSKY (Parte 2)

8. A Democracia


O conceito de democracia defendido por Chomsky está longe de ser aquele que vivemos na presente data. A palavra democracia, que tem origem grega – demos significando povo e kratia significando governo ou poder – tão utilizada durante a História, pode ter hoje os mais diferentes – e inclusive antagônicos – significados. Falam de democracia hoje, desde os anarquistas, até George Bush. Chomsky freqüentemente utiliza a palavra democracia e talvez por isso seduza elementos da esquerda mais institucional, que acreditam que os seus partidos sejam um elemento essencial nessa tal democracia. Mas enfim, o que Chomsky quer dizer quando utiliza a palavra democracia?

Como ele bem diz: “A crítica da ‘democracia’ entre os anarquistas sempre foi uma crítica da democracia parlamentar, da maneira como ela surgiu dentro das sociedades com aspectos fortemente regressivos”(31). Sua crítica vai no mesmo sentido da crítica anarquista. Quando utiliza a palavra democracia de maneira positiva, não se refere a ela, como expressão dos partidos políticos e do sufrágio universal. A democracia representativa seria, assim como mostraram amplamente os anarquistas, uma forma de entregar a um terceiro – o político profissional – o direito que cada um de nós tem, de fazer política e de participar nas decisões diretamente. Como diz Malatesta: “Governo significa delegação de poder, ou seja, abdicação da iniciativa e da soberania de todos nas mãos de alguns.”(32) O governo seria, portanto, um elemento centralizador que tiraria do povo a capacidade de tomar as decisões políticas. Assim, o parlamento criaria uma distinção entre os governantes e os governados aumentando progressivamente a distancia entre uns e outros. Pelos próprios exemplos da História, podemos observar que mesmo os governos mais “progressistas” têm uma enorme distância da base e, conforme sustenta sua burocracia – os governantes – têm cada vez mais a necessidade de permanecer no poder e acabam corrompidos por esse próprio poder, sem falar no dinheiro. Como escreveu Kropotkin:

“Os parlamentos, fieis à tradição real e a sua transfiguração moderna, o jacobinismo, não fizeram senão concentrar os poderes nas mãos do governo. Funcionalismo para tudo – tal é a característica do governo representativo. Desde o princípio deste século, se fala em descentralização, autonomia, e não se faz senão centralizar, matar os últimos vestígios de autonomia.”(33)

Segundo Chomsky, a democracia representativa seria criticada basicamente por dois motivos: primeiramente por razão da centralização das decisões no Estado, que exerceria o monopólio do poder; depois, pela democracia representativa tratar somente da esfera política e não se estender às outras esferas. Apesar de Chomsky acreditar que os partidos políticos são, algumas vezes, a expressão da vontade do povo, ele diz que a criação de partidos políticos não é a melhor maneira de atingir os desejos do povo e nem mesmo garante que isso seja um meio adequado.(34)

O sentido que Chomsky dá à palavra democracia é o seguinte: participação efetiva nas tomadas de decisão. Isso não significa uma participação meramente consultiva, mas realmente deliberativa nas decisões relativas a cada um. Poderíamos, inclusive, realizar uma comparação entre a “democracia” em Chomsky, e a “autogestão” estendida ao âmbito político, o que alguns anarquistas consideram ser o federalismo. A mesma autogestão que explicamos acima, quando estendida ao âmbito político, constitui o conceito de democracia que julgamos estar presente em Chomsky. Podemos relacionar essa democracia, mais com o conceito de democracia direta do que com a democracia representativa, ou parlamentar. Na democracia direta, as decisões não são inteiramente delegadas a uma outra pessoa – o que acontece na democracia representativa – mas são tomadas por cada grupo, no âmbito do trabalho ou no âmbito das comunidades. Uma efetiva democracia em que o poder emana realmente do povo e não de uma classe de representantes qualquer, que toma as decisões em nome do povo. A possibilidade de uma instância decisória maior e a possibilidade de relação entre as comunidades e os diferentes ramos de trabalho, constituiriam o federalismo que Proudhon defendera na década de 1860.

O federalismo abriria as portas para uma instância decisória descentralizada que balancearia, como acreditava Proudhon, a autoridade e a liberdade. Possibilitaria, dessa forma, a tomada de decisões fora do Estado. Escrevia ele que

“Federação (...) quer dizer pacto, contrato, tratado, convenção, aliança,etc., é uma convenção pela qual um ou mais chefes de família, uma ou mais comunas, um ou mais grupos de comunas ou Estados, obrigam-se recíproca e igualmente uns em relação aos outros para um ou mais objetos particulares, cuja carga incumbe especial e exclusivamente aos delegados da federação.”(35)

“A idéia de federação é certamente a mais alta à qual se levou até aos nossos dias o gênio político. (...) Ela resolve todas as dificuldades que suscita o acordo Liberdade e Autoridade. Com ela não temos mais de recear afundarmo-nos nas antinomias governamentais (...).”(36)

Dessa forma, as diversas comunidades tomariam as suas decisões em nível local, passando as decisões a um delegado – que seria escolhido por membros da própria comunidade e teria mandato revogável – que se encarregaria de levar as decisões de sua comunidade para uma instância maior de decisão. A grande diferença em relação ao sistema político representativo é que esse porta-voz (o delegado) seria somente um elo de transmissão entre a comunidade e uma instância decisória maior, e não decidiria pela comunidade que representa.

Chomsky diz que “os representantes devem responder diretamente para a comunidade orgânica em que vivem”, que “os partidos políticos representam basicamente interesses de classe” e que “à medida que os partidos políticos forem sendo necessários, a organização anarquista da sociedade terá falhado”. Nesse sentido, ele em muito se assemelha àqueles que defendem a extensão da autogestão também ao âmbito político. É por isso que, do nosso ponto de vista, podemos desmistificar o tal conceito de democracia presente em Chomsky, mostrando que apesar da utilização de uma palavra que já não diz mais nada, o significado que é dado a ela é, em muito, bastante radical.

9. As Metas e os Projetos

Todo o pensamento de Chomsky em relação ao anarquismo está sendo trabalhado a partir da perspectiva que ele mesmo definiu enquanto sendo as metas e os projetos. Segundo suas próprias definições

“Por projetos, eu quero dizer a concepção de uma sociedade futura que inspire o que realmente fazemos, uma sociedade na qual um ser humano respeitável gostaria de viver. Por metas, eu quero dizer as escolhas e tarefas que estão a nosso alcance, e iremos seguir um caminho ou outro, guiados por um projeto que pode estar distante e não ser muito bem acabado.”(37)

Dessa maneira, ele cria um método para podermos traçar objetivos factíveis e que podem nos trazer ganhos imediatos. Para Chomsky, por mais que os ideais de revolução ou de uma sociedade libertária estejam tão presentes em nós, não adianta somente termos isso em vista e não nos mobilizarmos hoje para começar a traçar o caminho rumo a esse objetivo. Para ele, as metas seriam os objetivos de curto prazo; algo bem definido que podemos realizar hoje. Assim, podemos entender como metas, por exemplo, uma exigência no ambiente de trabalho por melhores salários, ou a organização da comunidade para que uma rua seja asfaltada; enfim, tudo aquilo que dentro de um curto prazo, temos a possibilidade de conseguir. Essas metas envolvem escolhas difíceis e com sérias conseqüências humanas. Elas devem ser traçadas com o objetivo de resolver um problema imediato. Existem pessoas que têm necessidades imediatas e não podem esperar muito tempo por uma solução; por isso, uma meta pode ser alimentar os famintos ou lutar para que o governo melhore o nível da assistência de saúde aos cidadãos. Muitos podem acusar essas metas de serem “assistenciais” ou “reformistas” mas o fato é que, para Chomsky, são necessidades imediatas e que precisam ser resolvidas. A luta por esses ganhos, porém, pode ser uma faca de dois gumes. Podemos, muitas vezes, acabar perdidos em meio à institucionalização e termos como nosso fim essas metas de curto prazo. É aí que entra o projeto. O nosso projeto – ou, aquilo que vemos como fim – é a realização de uma sociedade libertária onde cada um possa ter direito ao desenvolvimento completo de suas faculdades e potencialidades; uma sociedade que não dê espaço a qualquer tipo de opressão. O que Chomsky vai dizer é que as nossas metas devem sempre ter em vista um projeto, que pode não ser bem definido, mas deve servir como um horizonte a ser atingido. Assim, ao traçarmos nossos objetivos de curto prazo, devemos sempre ter em vista onde queremos chegar pois, somente assim, poderemos evitar de nos perdermos ou sermos enganados pelos menores ganhos que queremos obter.

Isso levanta uma importante reflexão sobre as reformas e a revolução – o que tratamos com um pouco mais de profundidade num outro artigo. Segundo Chomsky, esse método de enxergar a dinâmica social pode ser aplicado na discussão das reformas – sendo estas entendidas como os ganhos de curto prazo – e da revolução – sendo esta entendida como fim último e grande objetivo dos libertários. Para ele, o erro nessa análise seria colocar as reformas como sinônimo de reformismo. O reformismo seria as reformas sendo entendidas como o fim. O objetivo final de um reformista é a reforma. No entanto, as reformas podem ser entendidas como um fim – constituindo, nesse caso, o reformismo – ou podem ser entendidas como uma meta, um ganho de curto prazo que abre caminho para algo maior. A defesa que Chomsky faz dessa luta pelos ganhos de curto prazo tem suas raízes principalmente no pensamento de Rudolf Rocker e de Rosa Luxemburgo. Rocker, cujos argumentos eram a base do anarco-sindicalismo, dizia que os ganhos de curto prazo serviriam para a melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores, mas ao mesmo tempo serviriam para criação de consciência e para a preparação de um mundo ideal – a tal política pré-figurativa já citada anteriormente. Para ele, os sindicatos revolucionários têm dois objetivos:

“1º Como organização militante dos trabalhadores contra os patrões, dar força às reivindicações dos trabalhadores para garantir a elevação de seu meio de vida. 2º Como escola para a preparação intelectual dos trabalhadores, capacitá-los para a direção técnica da produção e da vida econômica em geral, de forma que, ao produzir-se uma situação revolucionária, eles estejam aptos para tomar por si mesmos o organismo social-econômico e refazê-lo em concordância com os princípios socialistas.”(38)

Rosa Luxemburgo tem também grande influência nessa concepção de Chomsky. Quando em resposta ao criador do reformismo dentro da social-democracia alemã, Edward Bernstein, ela justificava que

“as reformas e a revolução não são métodos diferentes de desenvolvimento histórico, que se pode escolher à vontade no refeitório da história, (...) e sim fatores diferentes no desenvolvimento da sociedade de classe, condicionados um ao outro e que se completam, ainda que se excluindo reciprocamente.” (39)

As reformas e as revoluções não seriam portanto antagônicas, mas sim complementares e, dentro da análise de Chomsky, deveriam ser entendidas e projetadas em conjunto. Um ganho de curto prazo, por isso, pode ser um meio para que algo mais seja feito. Essas metas, como já dito, não devem nunca perder de vista o projeto libertário, ou seja, a revolução e a constituição de uma sociedade libertária. Esse projeto deve iluminar as nossas ações de hoje e servir sempre como um guia, inspirando e dizendo em que sentido devem acontecer as nossas ações.

Malatesta que, como dissemos anteriormente, não é citado por Chomsky, desenvolveu algo semelhante a esse pensamento quando em suas reflexões sobre as reformas. Enquanto a tão sonhada revolução não chegar, dizia ele, não devemos acabar condenados à inação, esperando que a revolução chegue por si só. Para ele, as atividades de propaganda e a luta pelos ganhos de curto prazo também seriam um passo rumo ao projeto libertário. Segundo ele, a conquista de reformas poderia ser entendida como um ganho, arrancado do governo, e serviria como um primeiro passo rumo à revolução. Dizia Malatesta que

“(...) é preciso arrancar do governo e dos capitalistas todas as melhorias de ordem política e econômica que podem tornar menos difíceis para nós as condições da luta e aumentar o número daqueles que lutam conscientemente. É preciso, portanto, arrancá-las por meios que não impliquem o reconhecimento da ordem atual e que preparem caminho ao futuro.”(40)

10. A Teoria da Jaula

Como último tema, decidimos tratar da Teoria da Jaula e da polêmica que se realizou em torno dela. Conforme vimos acima, a forma de pensar de Chomsky é muito semelhante a muitos anarquistas. Então por que Chomsky não é bem recebido por boa parte dos anarquistas? Eis o que pretendemos esclarecer ao expor e discutir essa sua teoria.

Baseado em sua concepção de metas e projetos, Chomsky começou a pensar a relação dos movimentos com o Estado. Nessa relação – também em grande parte contemplada na discussão de reformas e revolução colocada acima – ele começou a pensar em como lidar com as presentes tiranias e, por meio dos movimentos sociais, investir numa tentativa de aumentar o escopo da liberdade. É aí que Chomsky vai chegar a uma conclusão que ele sustenta com bastante eloqüência: as corporações multinacionais são tiranias muito piores que os governos. Segundo o seu ponto de vista, os governos, por menos democráticos que sejam, dão a possibilidade – mesmo que mínima – de intervenção ou participação do público, e as corporações são ditaduras informais que não dão praticamente nenhum espaço para influência ou participação. Essa vulnerabilidade do governo deveria servir para que as pessoas conseguissem ganhos, lutando contra os problemas que as afligem de maneira imediata. Essa possibilidade de influência não necessariamente deveria passar pela via institucional; ela poderia se dar também, e principalmente, por pressão popular, movimentos de ação direta, enfim, as pessoas poderiam pressionar o governo de todas as maneiras possíveis. O que é claro para Chomsky é que o Estado seria, de certa maneira, “pressionável”. Ao contrário, as corporações – ou tiranias privadas como Chomsky gosta de chamá-las – têm como único objetivo, a obtenção de lucro e não têm qualquer dever, mesmo que retórico, de proteção das pessoas. Ele acredita que é muito mais difícil um movimento influenciar uma empresa do que influenciar o governo.

É a partir desse ponto de partida que a Teoria da Jaula será concebida. Segundo Chomsky, ela foi-lhe explicada pelo “movimento de trabalhadores do Brasil”. Perguntamo-nos que movimento seria esse; os Sem Terra talvez? Quem sabe, pode ser que seja. O fato é que toda essa teoria está baseada na seguinte concepção: a sociedade contemporânea estaria trancafiada dentro de uma jaula. O objetivo daqueles compromissados com a luta pela liberdade, pela igualdade e contra a opressão deveria ser, portanto, aumentar o chão dessa jaula até que as barras se quebrem e que o povo pudesse se ver livre da opressão – da jaula, cerceadora de suas liberdades. Muitas vezes, nos seus textos e entrevistas ele sustenta que o Estado seria essa jaula. A partir dessa premissa, caberia aos movimentos “progressistas” garantir cada vez mais direitos, dentro do Estado, e esse seria um caminho, ou o primeiro passo para sua abolição. Como a grande tirania de nosso tempo seria as corporações, o Estado, nesse sentido, poderia garantir alguns direitos e algum tipo de bem-estar às pessoas. Realmente parece confuso. Para Chomsky, no mundo de hoje

“(...) as metas de um anarquista comprometido devem ser defender algumas instituições do Estado do ataque que é feito contra elas e ao mesmo tempo tentar fazer com que, ao final, elas sejam desmanteladas, constituindo uma sociedade mais livre.”(41)

Essa idéia de “defender” o Estado em alguns sentidos é a grande polêmica com os anarquistas. Estes, desde há muito tempo, sustentam que o Estado, juntamente com o Capital são as duas grandes tiranias que escravizam o povo. Como é que, de uma hora para outra, algum libertário pode falar em defender qualquer aspecto que seja do Estado? Para alguns é um absurdo que Chomsky dê declarações desse tipo:

“Minhas metas de curto prazo são defender e até mesmo reforçar elementos da autoridade do Estado que embora sejam ilegítimos de maneira fundamental, são decisivamente necessários neste momento para impedir os esforços dedicados a atacar os progressos que foram conseguidos na extensão da democracia e dos direitos humanos.”(42)

Para ele, as conquistas sociais, que foram conseguidas depois de anos e anos de movimentação social, estão sendo perdidas em nome dos lucros. A jornada de oito horas de trabalho, as boas condições de saúde e segurança no trabalho, o registro em carteira, as férias e diversos outros direitos duramente conquistados, são exemplos de perdas que temos sofrido a cada dia com a ordem neoliberal que vem emergindo. Por isso, fazer com que o Estado faça cumprir essas leis, para Chomsky, é um caminho de dar ajudas de curto prazo às pessoas que realmente precisam. Isso está intimamente ligado à sua forma de pensar as metas e os projetos, as reformas e a revolução. Estes ganhos obtidos junto ao Estado – as reformas – conforme vimos acima, devem ser entendidos como um primeiro passo rumo à liberdade. A partir dessas conquistas, as pessoas devem querer sempre mais, uma forma de estender ao máximo essas conquistas. Além disso, sua análise acabará colocada da seguinte maneira: se as empresas puderam ser “reformadas” pelos movimentos anarquistas durante grande parte da História, por que é que os governos atuais não poderiam? Para Chomsky, trata-se da mesma questão.

Embora a tal teoria seja complicada dentro do plano das idéias, quando é colocada em termos práticos, pode ser aceita sem maiores polêmicas. Chomsky tem uma visão muitíssimo pragmática e nada idealista. Para ele, aqueles que têm necessidades urgentes hoje, devem conseguir resolver seus problemas hoje. Por isso, ao falarmos dos famélicos, daqueles que não têm assistência médica decente, Chomsky é o primeiro a defender que essas pessoas sejam auxiliadas imediatamente, mesmo que pelo Estado, pois ao contrário, podem acabar mortas. Se tivermos duas alternativas: 1. Auxiliar as pessoas por meio do Estado ou 2. Simplesmente não auxiliá-las; ele é claro ao fazer a sua opção pela primeira alternativa. E é nesse sentido que continuará toda a sua análise. Se tivermos duas opções: 1. Pressionamos o Estado para que ele faça a aplicação das leis que exigem proteção e segurança no trabalho ou 2. Simplesmente ficarmos observando as pessoas morrerem sem nada fazer, ou. mesmo que bem intencionados, não conseguirmos, de forma efetiva, evitar essas mortes; então a alternativa a ser escolhida seria novamente a primeira. Para ele, mesmo que os revolucionários tenham projetos para a solução desses problemas, a partir do momento que eles ainda não conseguirem ser efetivos, deve-se optar pela alternativa que tem mais efetividade naquele momento. Ao ser questionado se essa sua meta não está em contradição com o seu projeto, Chomsky afirma que sim e que ambas sempre estarão em conflito. Segundo ele, caberá a cada um analisar os fatos e optar pelas metas que tiverem mais impactos sobre o bem-estar das pessoas e tentar, ao máximo, fazer com que essas metas estejam alinhadas com o projeto.

***

Essas dez relações entre o pensamento de Noam Chomsky e as idéias do anarquismo podem nos dar uma idéia de suas afinidades com o ideal libertário. Para muitos, isso pode surpreender; para outros, pode contribuir na discussão e na atualização das idéias que buscam minimizar os grandes problemas do mundo de hoje. Não se trata de levar os escritos de Chomsky ao pé da letra como uma fórmula para a solução desses problemas. Ele mesmo diria que se fizermos isso, estaremos mais para fiéis de uma igreja do que para militantes anarquistas. Suas concepções servem para dar algumas idéias e contribuir na discussão do anarquismo hoje.

Com o fim do mundo “socialista” no século XX, as antigas previsões de Bakunin acabaram confirmadas, e a polêmica dentro do socialismo entre os estatistas e os anarquistas ganhou uma nova configuração. A História mostrou a todos que queriam ver, que o tal projeto de ditadura do proletariado era um completo fiasco. Com isso, abre-se uma boa perspectiva para os militantes libertários visto que o socialismo de Estado provou-se incapaz de superar muitos dos problemas que assolam o mundo.

Outro fator que acaba por nos dar credibilidade é o contexto político do Brasil. O antigo sonho de milhares de militantes do Partido dos Trabalhadores de ver o seu partido chegar ao poder acabou realizado. No entanto, o PT mostrou-se incapaz de trazer qualquer mudança no quadro político, econômico e social do país. Além de ter mantido as mesmas políticas econômicas do governo FHC, o governo do PT trouxe um agravante maior: por razão de praticamente todos os movimentos sociais estarem envolvidos em sua fundação – aos finais de década de 1970 e começo da década de 1980 –, agora que o PT é governo, esses movimentos sentem-se contemplados, de certa forma, nesse governo. Ou seja, simplesmente não há forte oposição. Apesar disso, esses movimentos sociais vem percebendo que mesmo no governo do PT não há espaço para a verdadeira democracia ou para a verdadeira liberdade. Apesar de conservadores em muitos sentidos e freqüentemente nada libertários, esse é um espaço que pode ser utilizado de maneira produtiva pelos anarquistas. Encontramos hoje uma série de ex-petistas frustrados com o que se tornou seu partido e uma série de militantes desolados com a institucionalização de seus movimentos ou pelo pouco espaço dedicado às práticas do socialismo e da liberdade. Talvez esse seja um outro espaço interessante a ser ocupado pelas idéias libertárias.

Com o fim do socialismo estatista e com a prova de que mesmo os governos “de esquerda” são tão reacionários como qualquer outro, abrem-se as portas para o desenvolvimento do socialismo libertário. Os grandes problemas colocados ao mundo de hoje, continuam sendo os mesmos: a opressão do capitalismo, a alienação e exploração dos trabalhadores, o grande número de desempregados, a repressão, o controle por parte do Estado, dentre tantos outros. É a “desgraça da exploração econômica e da escravização social e política”. A solução colocada por Chomsky para esses problemas está nas práticas do socialismo libertário. Quando colocamos uma questão a ele, alguns meses atrás (ainda em 2004) e perguntamos se o anarquismo ainda serviria como inspiração e guia para a solução de todas essas questões, sua resposta foi direta: “sem a menor sombra de dúvida.” (43)


Notas

1. Demos preferência para os livros de nosso conhecimento e que foram traduzidos para o português.

2. Chomsky, Noam. Notas sobre o Anarquismo. São Paulo: Imaginário/Sedição, 2004.

3. Ibid. p. 23.

4. Sobre o pensamento individualista de Stirner, ver: Barrué, Jean; Armand, Émile; Freitag, Günther. Max Stirner e o Anarquismo Individualista. São Paulo: Imaginário, 2003. / Diaz, Carlos. Max Stirner, uma Filosofia radical do Eu. São Paulo: Imaginário, 2003. / Stirner, Max. O Único e a sua Propriedade. Lisboa: Antígona, 2004.

5. Para saber mais sobre o anarco-sindicalismo, ver: Vários. História do Movimento Operário Revolucionário. São Paulo: Imaginário, 2004. / Mintz, Frank; Leval, Gaston; Berthier, René. Autogestão e Anarquismo. São Paulo: Imaginário, 2002. / Samis, Alexandre. Clevelândia: anarquismo, sindicalismo e repressão política no Brasil. São Paulo: Imaginário, 2002. / Lopreato, Christina Roquette. O Espírito da Revolta. São Paulo: Annablume, 2000. / Cubero, Jaime. Anarco-sindicalismo no Brasil. São Paulo: Index Librorum Prohibitorum, 2004. / Azevedo, Raquel de. A Resistência Anarquista. São Paulo: Arquivo do Estado, 2002.

6. Sobre o pensamento anarco-comunista, ver: Malatesta, Errico. Escritos Revolucionários. São Paulo: Imaginário, 2000. / Malatesta, Errico. A Anarquia. São Paulo: Imaginário, 2001. / Malatesta, Errico. Anarquistas, Socialistas e Comunistas. São Paulo: Cortez, 1989. / Kropotkin, Piotr. Textos Escolhidos. Porto Alegre: LPM, 1987. / Kropotkin, Piotr. O Estado e seu Papel Histórico. São Paulo: Imaginário, 2000. / Kropotkin, Piotr. A Anarquia: sua filosofia e seu ideal. São Paulo: Imaginário, 2000. / Fabbri, Luigi; Malatesta, Errico. Anarco-Comunismo Italiano. São Paulo: Luta Libertária, 2003. / Reclus, Elisée. A Evolução, a Revolução e o Ideal Anarquista. São Paulo: Imaginário, 2002.

7. Para saber mais sobre o pensamento de Proudhon e Bakunin, ver: Proudhon, P.-J.. O que é a Propriedade? São Paulo: Martins Fontes, 1988. / Proudhon, P.-J.. Filosofia da Miséria. São Paulo: Ícone, 2003. / Proudhon, P.-J.. Do Principio Federativo. São Paulo: Imaginário, 2001. / Proudhon, P.-J.. A Propriedade é um Roubo. Porto Alegre: LPM, 1998. / Bakunin, Mikhail. Estatismo e Anarquia. São Paulo: Imaginário, 2003. / Bakunin, Mikhail. O Princípio do Estado – Três Conferências Feitas aos Operários do Vale de Saint-Imier. Brasília: Novos Tempos, 1989. / Bakunin, Mikhail. Deus e o Estado. São Paulo: Imaginário, 2000. / Bakunin, Mikhail. Escritos Contra Marx, São Paulo: Imaginário, 2001. / Bakunin, Mikhail. Socialismo e Liberdade. São Paulo: Luta Libertária, 2002. / Bakunin, Mikhail. Textos Anarquistas. Porto Alegre: LPM, 2002.

8. Para saber mais sobre a revolução espanhola, ver: Le Libertaire; Le Monde Libertaire. Espanha Libertária. São Paulo: Imaginário, 2002. / Santillán, Diego Abad de. Organismo Econômico da Revolução. São Paulo: Brasiliense, 1980. / Paz, Abel. O Povo em Armas 2v. Lisboa: Assírio e Alvim, 1975. / CNT. A Guerra Civil Espanhola nos Documentos Libertários. São Paulo: Imaginário, 1999. / Enzensberger, Hans Magnus. O Curto Verão da Anarquia. São Paulo: Cia das Letras, 1987. Santillán, Diego Abad de. Alforria Final. São Paulo: Index Librorum Prohibitorum, 2004.

9. Há um interessante livro publicado em Portugal tratando sobre os anarquistas individualistas que preconizavam a “propaganda pelo fato”. Foram responsáveis por uma série de atentados a bomba que fizeram algumas vítimas e de certa forma estigmatizaram os anarquistas. Estiveram presentes em grande medida na França, ao fim do século XIX. Ver: Maitron, Jean. Ravachol e os Anarquistas. Lisboa: Antígona, 1981.

10. Chomsky, Noam. Op. Cit. p. 170.

11. Bakunin, Mikhail. Estatismo e Anarquia. São Paulo: Imaginário, 2003 p. 47.

12. Ibid. 47-79.

13. Chomsky, Noam. Op. Cit. p. 68.

14. Ibid. p. 81.

15. Ibid. p. 87.

16. Para uma interessante discussão entre o anarquismo social e o anarquismo individualista, ver: Bookchin, Murray. Social Anarchism or Lifestyle Anarchism (Anarquismo Social ou Anarquismo como Estilo de Vida). San Francisco: AK Press, 1995.

17. Chomsky, Noam. Op. Cit. p. 54.

18. Rocker, Rudolf. Anarcosindicalismo. Barcelona: Picazo, 1978 p. 26.

19. Ibid. pp. 27-28.

20. Chomsky, Noam. A Luta de Classes. Porto Alegre: ArtMed, 1999 p. 25.

21. Chomsky, Noam. Notas sobre o Anarquismo p. 29.

22. Bakunin, Mikhail. O Princípio do Estado – Três Conferências Feitas aos Operários do Vale de Saint-Imier. Brasília: Novos Tempos, 1989 p. 62.

23. Chomsky, Noam. Notas sobre o Anarquismo pp. 162-164.

24. Bakunin, Mikhail. Socialismo e Liberdade. São Paulo: Luta Libertária, 2002 p. 41.

25. Chomsky, Noam. Notas sobre o Anarquismo p. 196.

26. Ibid. p. 161.

27. Ibid. p. 33.

28. Para um interessante artigo de Chomsky discutindo autogestão, ver: Chomsky, Noam. “Autogestão Industrial”. In: Autogestão Hoje. São Paulo: Faísca: 2004 pp. 43-48.

29. Ver Kropotkin, Piotr. La Conquista del Pan. Madrid: Jucar, 1977 pp. 87-90.

30. Chomsky, Noam. Notas sobre o Anarquismo p. 53.

31. Ibid. p. 80.

32. Malatesta, Errico. A Anarquia. São Paulo: Imaginário, 2001 p. 63.

33. Kropotkin, Piotr. Textos Escolhidos. Porto Alegre: LPM, 1987 p. 51.

34. Chomsky, Noam. Notas sobre o Anarquismo p. 204.

35. Proudhon, P.-J.. Do Principio Federativo. São Paulo: Imaginário, 2001 p. 90.

36. Ibid. p. 125

37. Chomsky, Noam. Notas sobre o Anarquismo p. 93.

38. Rocker, Rudolf. Op. Cit. pp. 93-94.

39. Luxemburgo, Rosa. Reforma ou Revolução? São Paulo: Expressão Popular, 2003 pp. 95-96.

40. Malatesta, Errico. Anarquistas, Socialistas e Comunistas. São Paulo: Cortes, 1989 p. 141.

41. Chomsky, Noam. Notas sobre o Anarquismo p. 100.

42. Ibid. p. 98.

43. Ibid. p. 206.

Extraído do site: http://www.rizoma.net/interna.php?id=213&secao=intervencao

do site: http://www.rizoma.net/interna.php?id=213&secao=intervencao

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